terça-feira, 3 de novembro de 2009

A fábrica

Mataram o Vasco Granja. A antiga estação de comboios de Carcavelos foi deitada abaixo. O antigo parque infantil da Inatel, com o escorrega vermelho maior do mundo e um crocodilo verde também gigante foi substituído por um parquezinho de merda sem piada nenhuma. Uma qualquer criatura perversa e omnipotente vai descobrindo cirurgicamente todos os pedaços da minha infância, e vai arrancando-os, um a um, por pura maldade, até nada me sobrar do que fui. Mataram também o meu barbeiro, um velho rude e hábil, de poucas palavras e uma grande navalha. Por isso, agora vou cortar o cabelo a um shopping cheio de luzes tristes de néon, que tem lá dentro um cabeleireiro uni-sexo, linha de montagem fria e asséptica de produzir em série cabelos no chão. Hoje, depois do trabalho, dirigi-me à fábrica (nome carinhoso com que apelido o meu cabeleireiro uni-sexo plantado no shopping cheio de luzes tristes de néon) e sucedeu o seguinte diálogo com a operária do cabelo que me calhou, dentro do universo das cerca de trezentas operárias do cabelo que lá trabalham:

- Queria, por favor, que me cortasse o cabelo e a barba com máquina zero.
- Tem a certeza que quer pente zero?
- Sim. Peço-lhe cuidado aqui atrás porque tenho um sinal.
- Quer que mantenha o sinal ou quer que o remova?
- Julgo ser um pouco perigoso remover-me o sinal com uma máquina de cortar cabelo.
- Estava só a brincar. Vamos então a isto.

E a operária do cabelo começou o seu debaste ritmado e mecânico. Trinta segundos depois, sinto um pequeno pedaço do meu corpo a ser cortado por uma máquina ruidosa, fazendo saltar pequenas gotículas do meu sangue.

- A senhora esqueceu-se do sinal.
- Esqueci-me completamente. Mas não se preocupe, eu vou já buscar um penso magnífico em forma de spray.

E um algodão ficou todo encarnado de embeber um sangue. E uma toalha ficou toda manchada de embeber o sangue. E um spray frio fez estancar o sangue. Tenho um pequeno cartão de promoção. Ficou tudo por 18 euros.

2 comentários:

Little Bastard disse...

Bravo, amarelo. A secundária ainda lá está. Passei por lá no outro dia e deu-me uma nostalgia parva. Apeteceu-me ir fumar um cigarro atrás do pavilhão.

o homem do estupefacto amarelo disse...

O vodka que andamos a beber deve estar estragado: que nostalgia atónita a nossa. Só falta dizer que ainda somos do tempo em que as crianças adoravam ver concursos de televisão apresentados por pedófilos.