quinta-feira, 17 de junho de 2010

Justiça ou chantagem, eis a questão


A esquerda reivindica que, por questões elementares de equidade social, recaiam menos sacrifícios sobre os que têm menos (a maioria da working class) e mais sacrifícios sobre quem tem mais (o capital e alguns quadros superiores). Nesse sentido, propõe uma série de medidas de redistribuição da riqueza e de transparência fiscal: impostos sobre as grandes fortunas, escalões do IRS mais progressivos; tributação das transferências para Offshores; taxação mais pesada sobre as mais-valias bolsistas; fim do sigilo bancário; abolição dos privilégios fiscais da banca, etc. É importante sublinhar que este programa de redistribuição é relativamente conservador. Não se fala aqui de nacionalizações, ocupações, expropriações ou qualquer outra coisa assustadora que relembre o PREC e que rime com “papões”. Não se fala igualmente de qualquer ditadura do proletariado que aniquile a burguesia e que imponha uma sociedade sem classes. Trata-se apenas e somente de propor que os mais privilegiados transfiram apenas uma ínfima parte da sua enorme riqueza para a sua comunidade (o que permitiria, por exemplo, isentar um trabalhador que ganhe um salário miserável de 500 euros de qualquer sacrifício adicional no actual pacote de austeridade). O nosso sistema político está hoje tão enviesado à direita que até uma agenda mínima como esta é considerada perigosamente subversiva.

A direita, (que mais não tem sido que o submisso braço político dos grandes grupos económicos), perdia antigamente o seu tempo a defender a suposta justeza dos ajustamentos assimétricos (alegando, por exemplo, que quem tem muito é porque é empreendedor e que quem tem pouco é porque é preguiçoso). Sendo este discurso particularmente perverso e inverosímil em tempos de crise, a direita vira-se agora para um discurso mais pragmático: “uma distribuição mais equitativa dos sacrifícios não seria viável porque iria incentivar uma fuga de capitais para o estrangeiro, agravando ainda mais a condição da própria classe trabalhadora”. Se a esquerda radica todo seu programa de igualdade no argumento da justiça, a direita radica todo o seu programa de desigualdade no argumento da chantagem. Mas não subestimemos este argumento – é poderoso, é persuasivo e é sobre ele que se edifica toda a eficácia da retórica liberal. É preciso que a esquerda mobilize algum esforço em tentar rebatê-lo. Apresento, de seguida, três pistas nesse sentido.

1- A chantagem da fuga de capitais é possível porque os mercados de capitais foram liberalizados. Desta forma, deverá ser retomado o anterior controlo sobre a entrada e saída de capitais que vigorou no mundo desde o pós-guerra até à ofensiva liberal dos anos 80. Esta medida seria também benéfica para o crescimento e estabilidade económica: a economia europeia cresceu a um ritmo incomparavelmente superior no tempo em que estava submetido ao controlo de capitais; e os países em desenvolvimento que cresceram mais e que resistiram melhor às diversas crises (Índia e China) foram precisamente aqueles que mantiveram algum controlo sobre o seu mercado de capitais.

2- É preciso ser mais exigente na definição dos direitos sociais considerados inegociáveis (isto é, não passíveis de serem sacrificados por nenhum preço). Se um qualquer Belmiro pressionasse o governo para reabilitar o trabalho infantil, ameaçando com a saída dos seus capitais para um país em que o trabalho infantil fosse legal, por mais que Portugal fosse prejudicado com essa fuga de capitais, tal proposta seria considerada chocante, e não teria qualquer base de apoio popular, porque violaria um direito percepcionado como absoluto e inegociável. Portugal poderia até ficar mais pobre com essa iníqua fuga de capitais, mas estaria disposto a pagar esse preço para manter a sua dignidade, protegendo um direito humano inalienável. Apesar dos ferozes ataques liberais aos direitos dos trabalhadores perpetrados nos últimos anos, existem ainda uma série de direitos (como o salário mínimo, o subsídio de férias e o direito à greve) que são, por enquanto, considerados inegociáveis. O que é necessário é, então, estender essa prerrogativa a um conjunto mais alargado de direitos sociais, limitando assim as possibilidades de chantagem dos grandes grupos económicos.

3- O argumento da fuga de capitais é utilizado tantas vezes que já é aceite como normal e legítimo. Não o é. É necessário “desbanalizá-lo”, denunciando o seu carácter chantagista e proto-criminoso. Independentemente do mérito empreendedor que um grande empresário possa ter, os seus capitais são também, em grande parte, resultado da mais-valia gerada entre o pouco que paga aos seus trabalhadores e o muito que sobra para si (isto é particularmente válido em Portugal, campeão europeu da desigualdade entre os rendimentos do capital e os rendimentos do trabalho). Nesse sentido, é legítimo defender que os capitais não pertencem inteiramente ao empresário, mas pertencem também em parte (pelo menos do ponto de vista simbólico) aos seus trabalhadores. Quem ameaça trair a sua pátria e o seu povo, fugindo com esse capital colectivamente obtido através do esforço de milhares de trabalhadores portugueses, ainda para mais apenas porque não está disposto a repartir com os mais desfavorecidos nem sequer com uma ínfima fracção da sua enorme riqueza, merece ser alvo da mesma repulsa e indignação social que nos causam actualmente os pedófilos e os funcionários da EMEL.

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