sexta-feira, 2 de julho de 2010

Não há caipirinhas nem privatizações grátis


Imaginem um tipo que está furioso porque desde que abriu uma loja no seu prédio - que vende bebidas alcoólicas até às tantas - nunca mais conseguiu dormir descansado. Uma noite, às duas da manhã, farto da barulheira desgraçada que mais uma vez se repete, o tipo vai à loja, ameaçando apresentar uma queixa às autoridades se o incómodo persistir. O dono do estabelecimento pede para ele se acalmar e oferece-lhe uma caipirinha. O tipo aceita, bebe a caipirinha gelada de um só trago e diz-lhe: não pense que me compra com esta bebida, vou continuar a reclamar até esta situação se resolver. O dono pega na garrafa de cachaça e parte-lhe a cabeça.

Imagine agora a seguinte história. Um governo privatiza uma empresa pública de um sector estratégico, vendendo quase todas as suas acções. No entanto, o governo quer ao mesmo tempo vender a sua posição (arrecadando muitos milhares de euros com a operação) e manter o controlo sobre as suas principais decisões. Desta forma, diz aos accionistas privados que as 500 acções que ainda detém (apenas 0,01% do capital da empresa) são mágicas, dando-lhes direito de veto e proibindo que qualquer accionista detenha mais do que 10% do capital. Ao mesmo tempo, esse governo assina um acordo que institui a livre circulação de capitais entre os países aderentes. Um dia, uma empresa de um desses países aderentes vizinhos oferece-se para comprar uma posição dessa empresa (num terceiro país e mercado em franco desenvolvimento). Sendo essa oferta bastante generosa, 74% dos accionistas votam em assembleia geral a favor da venda dessa posição. Com as suas acções mágicas, o governo intervém, inviabilizando a operação. A empresa que lançou a oferta faz uma queixa ao tribunal dessa união de países. O Tribunal proíbe a utilização dessas acções mágicas por violarem o princípio da livre circulação de capitais. A empresa rival compra essa posição privelegiada que lhe garantia cerca de 50% dos seus lucros. O governo lamenta o facto de um sector estratégico estar agora totalmente à mercê dos grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros.

Apesar das semelhanças desta história ficcionada com o que realmente sucedeu recentemente com a Telefonica e a PT (e respectiva disputa sobre o controlo da brasileira Viva), a última parte é ainda especulativa: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ainda não se pronunciou. Mas tendo em conta que em 2005 o mesmo tribunal considerou ilegais as golden shares que o governo espanhol detinha sobre a própria Telefonica, o mais provável é que as acções douradas do governo português sobre a PT desapareçam igualmente. Que fique ao menos a seguinte lição ao governo português: se quer manter o controlo sobre sectores estratégicos (coloca-se exactamente a mesma questão em empresas públicas como os CTT e a REN, de cuja privatização já se fala igualmente), não deve privatizá-los, ou, quanto muito, deverá privatizá-los apenas parcialmente, mantendo-se o governo português o seu accionista maioritário. A Telenor, empresa pública norueguesa de telecomunicações que constitui o 6º maior operador móvel do mundo (com 172 milhões de subscritores na Escandinávia, na Europa de Leste e na Ásia) é controlada pelo governo norueguês, que detém 53% do seu capital. Da mesma forma, a Telia Sonera, empresa de telecomunicações dominante na Suécia e na Finlândia, com 150 milhões de subscritores na Escandinávia, Europa Central, Ásia Central e Espanha, é controlada pelo governo sueco e pelo governo finlandês, que, juntos, detêm 50,2% do seu capital. Se a telefonica lançasse uma qualquer oferta a qualquer destas duas empresas públicas, que colidisse com os interesses estratégicos dos respectivos governos, o facto desses Estados serem os seus accionistas maioritários, inviabilizaria, de imediato, qualquer oferta indesejada. Recorrer ao truque das golden shares para manter o controlo de sectores estratégicos não é só menos honesto e menos coerente do que o Estado permanecer o accionista maioritário dos sectores em questão. É, sobretudo, menos eficaz. Não há caipirinhas nem privatizações grátis.

4 comentários:

funafunanga disse...

A Noruega não é membro do IV Reich, a.k.a. UE, pelo que faz as leis que quer no seu próprio país - aparentemente, chama-se a isso soberania nacional, uma curiosidade arqueológica.


Em todo o caso, depressa os eurocratas virão também atrás das empresas públicas em sectores estratégicos, ou tens dúvidas?

p.s.: esse gajo é um totó, eu com jeitinho mantinha o conflito sempre latente e mamava copos à pala todas as noites sempre sob a ameaça velada de irritar-me a sério.

o homem do estupefacto amarelo disse...

A UE não obriga os seus estados-membros a privatizarem/ nacionalizarem os seus sectores estratégicos - essa é uma das poucas decisões que ainda cabem aos governos nacionais. A Noruega pode não integrar a UE mas Finlândia e a Suécia integram-na e decidiram na mesma manter o sector estratégico das telecomunicações nas mãos do Estado. Sem a perda de eficiência que os liberais apregoam.

funafunanga disse...

Ok, Amarelo, por mais que me doa...

Admito, tens uma certa razão.

Porra.

funafunanga disse...

... mas que é o final dum sonho lindo, de neo-liberalismo com trunfo à laia de suecada global, lá isso é.