segunda-feira, 28 de junho de 2010
O bom, o mau e o anti-herói
Por mais cínicos, brutos, individualistas e cépticos que sejam os anti-heróis, são movidos sempre por um qualquer sentido de justiça mais ou menos escondido. É desse contraste entre a sua filha da putice e o seu sentido ético (apesar de pouco ortodoxo) que nasce a sedução destes personagens. Os heróis sem vícios (como o Tintim, o Luke Skywalker e o MacGyver) são sempre terrivelmente aborrecidos.
É assim que se explica o charme do anti-herói interpretado por Clint Eastwood em “O Bom, o Mau e o Vilão”. "The man with no name" pode ser um fora-da-lei, um mercenário que persegue o tesouro escondido com a mesma ganância e falta de escrúpulos dos seus dois rivais. Mas quando assiste a um mortífero combate da guerra civil, onde morrem centenas de soldados de ambos os lados, não deixa de desabafar: "I´ve never seen so many man waste so badly”. Na sua ética privada, a violência individual entre homens livres, por menos nobres que sejam os ideais que os movem, é, ainda assim, um espaço legítimo e racional de liberdade. Mas a violência colectiva de uma guerra, em que morrem massivamente os peões assustados de um jogo que os ultrapassa, parece-lhe apenas uma brutalidade sem sentido.
O desvio em relação ao protótipo do herói tradicional é ainda mais marcado no Travis Bickle do “Taxi Driver” (que não é só o melhor filme de sempre sobre a solidão; é o melhor filme de sempre, ponto final). Travis é um personagem perturbado e paranóico (um veterano traumatizado pela Guerra do Vietname), à beira da desagregação emocional, terrivelmente solitário e desajustado socialmente. No entanto, por mais reaccionário e racista que seja o seu sentido ético (Travis repete obsessivamente que a decadente cidade de Nova Iorque precisa de ser lavada de toda a escumalha que a contamina), o que é certo é que arrisca a sua vida em nome dessa ética pouco ortodoxa: mata um chulo sem escrúpulos e salva uma miúda de doze anos das teias da prostituição.
León, o Profissional é um anti-herói tão solitário como Travis, mas, ao invés de lutar contra o crime, é ele próprio um criminoso profissional - um assassino italiano a soldo da Máfia nova-iorquina. Contudo, não é pelo facto de ser um criminoso que León não é absolutamente rigoroso no cumprimento do seu próprio código de ética privado: a sua regra profissional “no women, no kids”, a sua lealdade a Tony - o seu patrão da Máfia, e o seu amor a uma planta de que cuida obsessivamente, são, para ele, normas morais absolutas. Além do mais, todo o seu dia-a-dia é rigorosamente metódico, espartano e solitário, de forma a que nada na sua vida privada perturbe as exigências da sua vida profissional. No entanto, quando o imprevisível surge e uma rapariga de doze anos (que acaba de perder toda a família num ajuste de contas provocado por um polícia corrupto e psicopata) lhe pede socorro, León assume a responsabilidade ética de a salvar (e de a adoptar), mesmo que isso implique que a sua vida anterior totalmente ordenada e previsível desabe por completo.
Mas os mercenários, psicopatas e assassinos de que falei não passam de bailarinas de porcelana ao pé do Henry Chinaski, alter-ego do Bukowski que protagoniza grande parte da sua ficção (conheci-o graças ao Bastard, que, numa roulotte no Estádio da Luz, entre uma bifana, uma imperial e três golos do Benfica contra o Guimarães, mo recomendou). Chinaski é um tipo execrável, bruto, vadio, bêbado, machista, violento, fanfarrão, boçal e cínico. Mas não deixa também de ter também uma forte sentido ético. No seu código moral privado, o bem é sinónimo de autenticidade e de liberdade individual absoluta (no seu caso, expressa através de uma vida intransigentemente boémia e errante) e o mal, o seu contrário: falsidade e sacrifício da liberdade, em nome do conformismo social e da respeitabilidade pública.
Apesar da sua sacanice crónica, o que é verdadeiramente arrepiante no anti-herói é o seu desligamento afectivo. No “Post Office”, primeiro romance de Bukowski, é desta forma seca e completamente desprovida de qualquer ressonância emocional, que Chinaski relata a sua separação:
“A bebé começava a gatinhar, a descobrir o mundo. A Marina dormia na cama connosco, à noite. Era a Marina, a Fay, o gato e eu. O gato também dormia na cama. Olhem só para isto, pensai, tenho três bocas para alimentar. Que estranho. Sentei-me e fiquei a vê-los a dormir.
Então, por duas vezes seguidas, ao chegar a casa de manhã, de manhã cedo, encontrei a Fay a ler a secção de classificados do jornal.
- Porra, estes quartos são todos caros - disse ela.
- É verdade – respondi.
Na noite seguinte, quando ela estava a ler o jornal, perguntei-lhe:
- Vais sair de casa?
- Vou.
- Está bem. Amanhã, ajudo-te a encontrar um sítio. Vamos dar uma volta de carro.
Aceitei pagar-lhe uma determinada quantia todos os meses. Ela disse:
- Está bem.
A Fay ficou com a miúda. Eu fiquei com o gato.”
Mas, novamente, é dos contrastes que vive um anti-herói, por que, de vez em quando, as suas emoções irrompem à superfície:
“Entrei numa má onda. Embebedava-me e bebia mais do que uma doninha fedorenta no Purgatório. Até cheguei a encostar a faca à garganta, uma noite na cozinha, e depois pensei: calma, rapaz, a tua filha pode querer que a leves ao jardim zoológico. Gelados, chimpanzés, tigres, pássaros verdes e vermelhos, e o sol a bater na cabeça dela…”.
É enternecedor como é que um filho da puta como o Chinaski pode ter acessos de amor parental.
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