sexta-feira, 18 de março de 2005

Journal Of An Idle Consultant

IV. Terapia

Um rasgo de felicidade enche-me as faces. Uma maravilha! vou-me repetindo até à exaustão, no interior do utilitário citadino com o aquecimento avariado.

Eis duas das vantagens de se trabalhar nos subúrbios:
- Uma: viaja-se sempre em sentido contrário ao do trânsito;
- Duas: não somos supostamente tão infelizes como os outros.

Uma maravilha! Só tem o que merecem! Repito-me até sentir uma certa náusea. Confesso gostar desta certa má disposição que sinto no estômago. A infelicidade dos outros pode ser por vezes cá um bálsamo. Já é Outono, a negra noite desce sobre nós cada vez mais cedo. Não háque enganar... os médios acesos das viaturas e os rostos apáticos dos seus condutores no regresso aos seus palacetes suburbanos adquiridos a trinta anos, definitivamente não enganam. Pelo menos assim tão de repente não enganam. Poucas coisas me devem fazer sentir melhor do que imaginar que as desgraças dos outros são piores que as nossas.

Gosto de ir ao final do dia a supermercados nos bairros bem da cidade. Duas a três vezes por semana cruzo a cidade rasgando o escuro manto outonal que a cobre. Escolho um supermercado de uma qualquer cadeia de um grande grupo económico. Entro. A iluminação branca fluorescente reflectida no chão de mosaico branco, nas paredes e expositores cremes, adquire um estranho tom acolhedor, quase uterino , uma espécie de deitar no divã do psiquiatra. A introspecção é obrigatória. Lentamente, como que ausente, percorro os corredores do supermercado. Soja, seitã, tofú. Alimentação para pseudo-iluminados Zen. Mais valia comerem cartão, sempre deve ser mais saboroso!. Picanha, peitos de peru, costeletas, orelha de porco. Sinto que alguma saliva se vai formando debaixo da minha língua. Corredor dos lacticínios. Leite gordo. Meio gordo. Magro. O relaxamento é total. movo-me tão lentamente que pareço estar a deslocar-me para trás.

Passo por uma família bem. Pai: perto dos quarenta, cabelo escuro puxado para trás à força de três camadas matinais de gel, a perder cabelo velozmente, casaco azul escuro com botões dourados e brasão ao peito e a pele ligeiramente bronzeada pelos passeios de fim de semana no pequeno iate do sogro. Mãe: trinta e poucos anos, loura de cabelos lisos pelos ombros, cara inchada do stress provocado pela empregada da Europa de Leste que apenas domina seis ou sete mil vocábulos em português, anca de quem foi abandonada pela beleza aquando do nascimento do terceiro rebento. Os rebentos: todos louros, um de uns prováveis oito anos corre velozmente para a secção das bolachas e chocolates, os outros dois, gémeos de trêsanos quais pequenos duendes de jardim agridem-se mutuamente provocando a ira dos pais. Sorrio.

Corredor das bebidas espirituosas. Enquanto percorro o corredor, vou tocando com as pontas dos dedos nas garrafas de whisky, gin e vodka. Que toque agradável. Escolho duas garrafas do melhor vodka russo e vou pagar. Numa das caixas um jovem casal de namorados, ambos de boas famílias discutem em alto e bom com a pobre da empregada, por qualquer coisa do género como o facto de esta ter colocado o pacote de bolachas digestivas da menina no mesmo saco de compras em que estavam os ovos.

À minha aproximação a porta automática do supermercado cede-me a passagem. Cá fora um vento frio e pequenas gotas de chuva que caiem sobre os pára-brisas dos automóveis estacionados aguardam-me.
Respiro fundo.

A vida pode não ser um mar de rosas, mas é pelo menos uma lata de mão de vaca com grão. Não cheira bem. Não sabe bem. Mas ao menos alimenta!

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