sábado, 20 de fevereiro de 2010

Carta aberta a Funafunanga, o nosso atónito monárquico



Caro Funafunanga,

Sendo eu viciado em tubos de cola e querelas intelectuais, e tendo cometido o erro de me auto-censurar em relação à pancadaria ideológica com o Bastard, vejo-me obrigado a recorrer a uma metadona conceptual de substituição, discutindo a monarquia contigo.

Por mais que um monárquico moderno se distancie do absolutismo, defendendo uma monarquia liberal e constitucional (como tu defendes), há 4 características intrinsecamente anti-democráticas em qualquer forma de monarquia:

1- Contrariamente à República, o Chefe de Estado não é escolhido democraticamente pelo povo, mas sim imposto por descendência da família real.

2- Numa República qualquer pessoa pode candidatar-se à Chefia do Estado. Numa monarquia só um membro da família real poderá ascender à Chefia do Estado. É violado o princípio da igualdade, sendo um resquício anacrónico e inaceitável das sociedades de castas que existiam antes da Revolução Francesa.

3- Numa República o poder do Chefe de Estado é transitório. Numa monarquia, uma só família (a família real) procura eternizar-se no poder, de geração em geração. Uma das consequências deste ponto é que se um presidente for mau, há uma forma simples e não violenta de correr com ele: basta não votar nele nas eleições seguintes. Se um rei for mau, não há nenhuma forma não violenta de nos livrarmos dele (e da sua descendência).

4- Os monárquicos tendem a usar bigodes de monárquicos.

Com os melhores cumprimentos republicanos,

o homem do estupefacto amarelo

9 comentários:

funafunanga disse...

Caro homem do espufecto amarelo,

vem um homem num sábado, ainda meio ressacado, passar os olhos pela net à espera de postas light que a sua limitada capacidade para assimilar estímulos sensoriais consegue absorver, e vê-se enredado em tamanha querela. Mas agradeço a carta à Berta, que muito me honra, e tentarei estar à altura.

1. A minha resposta não é talvez a que receberias dum monárquico 'tradicional'. Não frequento círculos monárquicos, nunca votei PPM, não tenho brasão nem cachucho e acho que um grande problema do ideal monárquico está justamente em boa parte dos seus apoiantes mais visíveis: gente pretensiosa do pior. São assim as coisas numa sociedade mediatizada - tal como os gays são julgados a partir de meia duzia de parolos de plumas e tangas leopardo a desfilar nas ruas, a população também tem uma ideia dos monárquicos como tipos de bigode que desconhecem o planeamento familiar e etc.

2. Quanto ao argumento da democraticidade na escolha do chefe de Estado:
a. A democracia como ideal é algo inatingível em todos os aspectos da organização do Estado. Não existe nem nunca existiu uma democracia pura. Os atenienses tinham uma democracia directa, mas só 10% da população era considerada cidadã de plenos direitos. Hoje em dia, temos por sobejamente provado que qualquer organização de pessoas tem uma tendência inelutável para a oligarquia (autores como Ostrogorsky, Weber, Duverger e sobretudo Robert Michels demonstraram-no bastante bem no tocante à organização dos partidos políticos e as suas repercussões nos sistemas políticos ocidentais).
b. De resto, isto da democracia como fim em si mesmo é uma construção recente. Aristóteles, por exemplo, perguntava-se qual era o sistema melhor, com vista a assegurar a liberdade dos cidadãos, e chegou à conclusão de que o melhor seria aquele que combinasse, em equilíbrio, elementos de democracia (governo pelo povo), oligarquia (governo pela elite) e monarquia (governo por um só).
- Olhando para a qualidade da participação democrática dos cidadãos, creio que temos poucas lições a dar, de resto, à Dinamarca ou Suécia, monarquias.
- Um chefe de Estado designado hereditariamente (não vamos sequer falar da monarquia visigótica ou da Prússia, que eram monarquias electivas) constitui um desvio ao princípio democrático, sim. Mas e se esse desvio de justificar, para proteger o povo dos governantes que ele próprio elegeu democraticamente? O que se perde em democraticidade ganha-se em imparcialidade do chefe de Estado – no computo geral, parece-me um bom negócio.
- A democracia, sobretudo num país de cultura algo laxista como Portugal, tem um sério inconveniente cujos efeitos temos sofrido na pele: não há uma ideia de longo prazo para o país. Os governantes e os presidentes sujeitam-se a eleições de 4 em 4 ou de 5 em 5 anos, respectivamente. Não querem tomar medidas impopulares no seu mandato que venham apenas a beneficiar os sucessores. Introduzir nesta equação um rei significa ter uma figura que usa da sua magistratura de influência para assegurar que o país seja pensado um pouco mais a fundo.

funafunanga disse...

3. Quanto à objecção sobre o princípio da igualdade. Acreditas mesmo que, na prática, qualquer pessoa pode chegar a presidente? Claro que qualquer um pode andar à cata de assinaturas e apresentar-se como candidato, mas em termos pragmáticos, apenas membros de uma determinada elite política lá chegam. E aí tens – o nosso sistema apenas é formalmente igualitário. A monarquia, no que toca à designação do chefe de estado, não é igualitária. Mas e os benefícios de termos um chefe de estado que desde a mais tenra idade é preparado para desempenhar essa função? E os bons monarcas por esse mundo fora, por regra são mais próximos – e mais populares – entre o povo do que qualquer político. Porque o povo sabe que o monarca, quando se lhes dirige, não os quer bajular – porque não precisa.
4. Há nas monarquias constitucionais uma forme simples e não violenta de se destituir o monarca. O poder vem do povo, representado nas cortes. Se fizer muita asneira, pode ser destituído.
- E a chefia do estado alicerçado na sucessão duma família tem outra vantagem que faz dele um sistema muito inteligentemente baseado na natureza humana: aproveita-se do instinto natural de cada um de querer deixar aos filhos uma situação melhor do que a encontrou. O Cavaco ou o Sampaio ou o Soares estavam-se nas tintas para quem viesse ocupar o palácio de Belém a seguir.
5. Quanto aos bigodes, v. o ponto 1.
Em suma: uma monarquia não é uma democracia pura. O nosso sistema também não. Contudo, as entorses que no nosso sistema existem à democraticidade e igualdade são amiúde escamoteadas e não trazem vantagens práticas para o país. Numa monarquia, esses desvios são assumidos, mas com vista a benefícios maiores. E pesando os prós e os contras, parece-me que os povos beneficiam com o negócio.

Little Bastard disse...

Em primeiro lugar, há algo de bizarro em estamos a discutir a monarquia, em 2010. Mas enfim, o Amarelo não resiste a querela, por isso vá vou meter a minha colherada.

A única vantagem que vejo é o facto de o rei ser tendencialmente muito mais independente. É rei faça o que fizer, portanto não tem que agradar a estes e aos outros, em teoria. Vai ser sempre rei, como tal não fica preso a políticas e medidas de curto prazo destinadas exclusivamente a perpetuar-se no poder.

Mas tudo o resto é mau. Bastaria dizer o nome de D. Duarte para arrumar a discussão, na verdade.
É um resquício arcaico de um sistema que diz que há cidadãos de primeira - o rei, sua família e descendentes - e de segunda, todos os outros. E isso é algo com que, de qualquer das formas, não posso concordar.
Por outro lado, a grande maioria das monarquias que ainda resistem não são, de facto executivas. São umas figuras decorativas, sustentadas vitaliciamente pelo Estado, que é suposto representarem algo como a reserva moral de um Estado. Volto ao exemplo do D. Duarte.

Em suma, não faz sentido. Até porque a democracia tem uma grande vantagem, que é responsabilizar os cidadãos. Acho que o Sócrates é uma merda, mas responsabiliza-nos a todos, porque o elegemos.

funafunanga disse...

Bastard, o D. Duarte é algo rústico, mas acha-lo um maníaco calculista estilo Sócrates? Quão mal nos poderiamos dar? Mas essa é uma situação, que como já disse, pode ser evitada pela designação pelas cortes (parlamento) de nova dinastia após quebra no regime. Também não vejo a coisa em termos de cidadãos de primeira e de segunda. Na nossa sociedade 'a caminhar para o socialismo' há essa distinção na prática, ainda que não assumida oficialmente. Trata-se de um cidadão diferente - designado para o cargo não por ter sido eleito com base em cálculos puramente imediatistas (v. o surgimento do Nobre), mas por provir de uma família que reconhecidamente fez algo de relevante pelo país. É a recompensa pós-morte desse gajo, e é um fardo sobre os sucessores, que devem estar à altura e merecê-lo. Nisto, acabamos por ir dar de novo ao tal espírito familiar da coisa - se souberes que o teu filho vai herdar isto, não é só o dever do cargo que te compele a fazer tudo para que isto não fique de pantanas.
Quanto À questão de os reis na Europa não terem poderes executivos... E o nosso PR, tem-nos? Ou será que o que se espera de um chefe de Estado é que faça algo mais do que aquilo que poderia constar da estrita letra impressa das competências constitucionais e use o seu magistério de influência para pôr isto nos eixos? E quem tem mais ascendente moral para isso não será quem é absolutamente independente? Voltamos àquela que consideras a única vantagem, mas que porventura tem outras consequências atreladas que acabam por revelar-se vantajosas para o sistema político.
Ter um rei é como ter um gajo como tu ou eu na chefia de estado – não está vinculado a partidos, não lhes deve nada, pode dizer o que lhe dá na real gana (no interesse do Estado e – o instinto a funcionar a favor das instituições – e também no interesse familiar). Por esse motivo, acaba por ser muito mais representativo do homem comum do que um PR saído da luta político-partidária. Aceitar a monarquia significa a meu ver escolher entre duas abordagens possíveis: uma abordagem palavrosa e revolucionária, em que contam mais os altos ideais e o dever-ser (o modelo francês de evolução social, sempre em convulsão com altos ideais abstractos que sempre se goram em parte), e uma outra, mais pragmática, que tem em atenção a natureza do ser humano e a importa para a organização política (o modelo inglês, por assim dizer, por ser uma abordagem pragmática, passo a passo, ancorada na natureza do homem e no tipo de sociedade em que vivemos).

o homem do estupefacto amarelo disse...

Exmo. Dom Funafunanga,

Reconheceste que a Monarquia (ao contrário da República) viola dois dos princípios que referi: o da escolha democrática e o da igualdade (pelo menos formal) no acesso a funções de soberania. Argumentaste que o princípio da transitoriedade do poder não é violado, em virtude do parlamento poder destituir o rei. Julgo que isso não é verdade: é o rei que tem poder para dissolver o parlamento e não o contrário. Mas mesmo que fosse verdade, tratar-se-ia sobretudo de uma formalidade, ou, na melhor das hipóteses, de uma excepcionalidade, enquanto na República, essa transitoriedade do poder constitui a regra e não a excepção. Todos as vantagens da monarquia que apresentaste (das quais destaco a maior imparcialidade e visão de longo prazo do soberano) não são intrínsecas (por exemplo, um rei idiota, pode não conseguir ter a inteligência suficiente para conseguir formular uma visão de longo prazo) e mesmo que fossem, não são suficientes para compensar a violação de 3 princípios tão elementares de uma democracia (num outro campo político, Hitler e Estaline provaram-nos que a democracia não pode ser vendida por nenhum preço). E os bigodes em caracol dos monárquicos são, a qualquer título, moralmente injustificáveis.

raviolli_ninja disse...

Epá, deixem-se lá de parvoíces. Rei independente my ass. Seria um óbvio representante e aglutinador do movimento conservador.

Arranjem-me uma princesa Letícia e eu prometo que perco 30 segundos a pensar nisso. Até lá, chapéu.

professor x disse...

Caro Funafunanga, arranaja lá um João II e fala-se nisso.

funafunanga disse...

Ando sem tempo, mas sucintamente:
1. O D. Duarte tem uma filha loirita que quando chegar aos 18 deve pôr a Letícia a um canto. Se for ela e não os pais a escolher a roupa.
2. Olhando para a Europa, quantos reis loucos ou imbecis têm? Alguns mais low-profile que outros, mas de uma maneira geral politicamente competentes. Se olharmos para a história, é mais fácil o povo eleger um tolo do que este chegar à chefia de Estado por sucessão.
3. A monarquia não é forçosamente conservadora. Alguns dos países mais avançados nas ditas questões fracturantes são monarquias e não se pode dizer que os reis tenham sido forças de bloqueio.
4. Quanto aos bigodes, como já disse, não tenho argumento. Aquilo é de facto inqualificável. Talvez certos meios andem com um atraso de meio século face às modas em vigor. Pelas minhas contas, daqui a uma década ou duas devem estar a chegar aos meios monárquicos as calças de boca de sino e barbas à Allen Ginsberg... Há males piores.

raviolli_ninja disse...

1. Esperemos para ver (já que tocar é capaz de ser hipótese fora da mesa).

2.Pareces duvidar da capacidade do território português em gerar mentecaptos.

3.Vide resposta anterior.

4. Quanto a bigodes, em certos círculos são até considerados avant-garde. Já a cara de imbecil é que é mais tramada.