sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Desabafos de um depressivo para quem o suicídio é a sua inclinação natural mas cuja vida tem insistido em reprimi-la
Se não fossem os dias de sol de inverno, as tiras de milho, o Benfica a jogar como o caralho este ano, o arroz doce que a minha avó fazia, os olhos da mulher do estupefacto amarelo, os estranhos bonecos de plasticina de Vasco Granja a crescerem comigo, eu a sair da escola primária a correr esbaforido para casa para chegar a tempo de ver o Dartacão, o quarto do meu irmão no sótão onde eu ia às escondidas mexer nos seus discos e na sua guitarra eléctrica, o escorrega vermelho da INATEL que me parecia o maior escorrega do mundo, a segunda melodia que o Johny Marr faz com a sua guitarra nas canções dos Smiths, o meu puto a dizer "eu nasci do colo do meu pai", eu a aquecer as minhas mãos numa caneca de cevada quente no inverno, a euforia com que eu recebi dos meus pais o meu primeiro walkman, as caipirinhas a 2 aéreos na Festa do Avante, o prazer com que eu com 10 anos descobria as cassetes estranhas do meu irmão no tempo em que ele ouvia boa música (primeiros álbuns de Xutos, Joy Division, Echo and the Bunnymen, Jesus & Mary Chain, etc.), a minha filha a dizer que ela é a princesa Fiona e eu o Shrek e que quer casar comigo, a alegria com que depois do segundo toque corríamos depressa para ir jogar à bola antes da professora ter tempo de chegar, a minha paixão doentia, irracional e descontrolada por música, a primeira ganza fumada com amigos mais velhos debaixo de uma arcada escura na Rebelva, os jogos intermináveis de Risco na casa vazia de Carcavelos, de tal forma que a vizinha de baixo nos telefonava às cinco da manhã a ameaçar que ia chamar a polícia, a alegria da minha primeira bebedeira numa festa de Carnaval em Paço de Arcos (com Vodka, curiosamente), o FMI do Zé Mário Branco, o Só do Palma, os livros do tio Patinhas em edições brasileiras que eu devorava quando era puto de tal forma que trocava a ordem dos pronomes pessoais como os brasileiros, a minha obsessão fanática de adolescência com o Jim Morrison (partilhada com o meu amigo Bastard) e o seu poster gigante sempre a cair-me nos cornos, aquela erva adulterada que fumei na faculdade e que me fez sentir que eu tinha aumentado de tamanho como a Alice no País das Maravilhas, o bacalhau com grão, ovo e batatas que a minha avó me fazia, as azeitonas verdes e amargas, o Led Zeppelin II, o disco mais brilhante de todos os tempos e que eu já ouvi mais de 14 mil vezes, a alegria que sentia quando na minha adolescência encontrava um vinil raro de Mão Morta ou Pop Dell'Arte na feira da ladra, a minha gata a ronronar no meu colo no inverno enquanto eu leio um bom livro, os duches quentes que eu desejaria que durassem para sempre, o prazer infantil de marcar um golo, o meu primeiro CD, o Led Zeppelin IV, comprado no Continente de Alfragide e para mim tão precioso como a moeda nº 1 do Tio Patinhas, a felicidade simples de comer um bitoque, os livros que eu levo desde sempre para a casa de banho, marcando-os com folhas de papel higiénico, a alegria de réptil que sinto sempre que me aqueço ao sol, e principalmente, se não fosse a felicidade animal que sinto quando, aflito, finalmente posso mijar, matava-me.
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2 comentários:
Este é provavelmente o teu melhor contributo, até à data.
Talvez te deixemos ficar.
Pssst, é só para avisar que ser depressivo e misterioso já não resulta para engatar gajas.
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