Meus amigos, o assunto é sério.
Quero partilhar convosco um episódio que me transtornou profundamente.
Estava eu preparado para uma bela tarde de copos com os amigos, e saiu-me, pela primeira vez, um verdadeiro banho de imersão na grande experiência da paternidade. E foi mau. Muito mau. E isto é um bocado preocupante para um tipo que está a um mês de ser pai.
Eu explico.
Recebi um inocente convite de um casal amigo, sendo que a senhora, minha amiga de muito longa data, está grávida: “venham cá a casa no sábado à tarde, aproveitam para ver o Benfica”. Parecia-me bem. Para além do casal anfitrião, ia outro casal amigo, que tem um filho de meses. E eventualmente mais um ou dois dos nossos amigos, sem filharada.
Ora muito bem. O nosso grupo tem uma longa tradição de lanches ajantarados, bem regados e bem fumados, feitos de piadolas e boa disposição. Com o passar do tempo, os encontros são mais raros, o que os torna ainda mais preciosos, mas lá vão acontecendo.
Ora o que eu previ, e aquilo por que eu ansiava, acabou por se transformar numa aterradora experiência sociológica. Eu esperava uma boa tarde de um bom convívio, uns copos, umas ganzas, com sorte ver o meu Benfica ganhar, ver a malta, divertir-me, e à meia-noite estar em casa.
Em vez disso, entrei na puta da Kidzania.
Chegado lá, duas crianças inesperadas, de chofre: o sobrinho da minha amiga anfitriã, e a filha de um casal amigo deles, por acaso bastante simpáticos - que eu mal conhecia e que não eram frequentadores destas cóbóiadas. Estava também o tal bebé de meses, dos meus amigos. Chegou ainda, mais tarde, outra amiga, também armada com a sua criança, sendo que eu ansiava era pela chegada do marido dela, meu amigo do peito e grande bebedor e benfiquista. Para além disto, duas crianças em gestação, a da minha senhora e a da anfitriã.
Durante algum tempo, fui conseguindo ignorar a estranheza daquilo. Fui bebendo uns copitos, sendo fracamente acompanhado pelos outros machos do local. Mas, desde o princípio, uma coisa ficou absolutamente clara para mim: eu estava no território dos putos, e não mandava um caralho naquela casa. Mais, fui descobrindo que os convidados daquela tardinha foram escolhidos a dedo. O critério foi muito simples: a minha querida amiga convidou todos os amigos que têm filhos, ou que estão prestes a tê-los.
Devo explicar que esta cara amiga pura e simplesmente pirou, enlouqueceu, desde que ficou grávida. Conheço-a desde os 5 anos de idade, e passou a cumprimentar-me no Messenger com um “olá, a tua mulher vai quando à consulta?”. Perdão? What the fuck?! Atão e o “estás bem, o que tens feito, tens escrito, vais sair?”, etc, etc. Desapareceu. Na vida dela, e para ela aparentemente também na minha vida, tudo deixou de existir, excepto o simples facto de virem crianças a caminho. Deixámos de ser indivíduos, somos apenas geradores de seres que hão de chegar. Esta senhora está de tal forma eufórica que tudo o resto deixou de existir. Chegou ao cúmulo de sugerir que as pessoas chegassem mais cedo, “para irmos com as crianças ao parque”. Foda-se, só amarrado. Cheguei pouco antes do Benfica, claro.
Depois, a tentar ver o meu querido clube, era um corropio de criançada à frente da TV (ok, nessa altura eram apenas duas crianças, mas eram mexidas). Eu a ver o Saviola cheio de estilo a encaminhar-se para a baliza para falhar mais um golo e…um puto mete-se à frente, a esfregar com as mãos no ecrã, distraindo El Conejo da jogada e prolongando a minha agonia. E eu, de copo de vinho na mão, a pensar no meu sofazinho de casa, no meu barrilinho de cerveja no frigorífico, na perspectiva de ver o Glorioso descansadinho, a ganhar ao Marítimo. Era impossível. Quando o jogo lá terminou (1-0, golo do pequeno grande Coentrão), já passava das 9 horas. Levantei-me, enchi o copito, e fui papar, já que estava com a larica. Até que me é comunicado, com pompa e circunstância, que “agora são as crianças, nós comemos a seguir”. Oh que caralho, eu não percebo nada disto, mas aquela hora não é um bocado tardia para as crianças paparem? Porque raio não paparam quando estava a dar a bola, em vez de andarem pela sala a mandar merdas ao chão e a incomodar um sócio que sofria?
Depois percebi. Não paparam antes porque isso retiraria à minha anfitriã a possibilidade de me mandar a bela sentença: “as prioridades são elas. Vai-te habituando”. Como se fosse uma mãe de 7 filhos, caralho! Eu vou ter um filho antes dela!
Durante toda aquela tarde e noite fui observado. Eu era um ratinho de laboratório, encurralado numa experiência macabra. Senti-me sempre observado, com esta cara amiga a registar todas as minhas reacções perante as crianças. Que oscilaram entre o desprezo, a ignorância e talvez 30 segundos de genuíno interesse, isto em perto de 5 horas de convívio.
Atenção, ela não fez isto para me lixar, para me entalar, para me desagradar. Fê-lo porque está de tal forma excitada com a perspectiva de ter um filho que quis antecipar a experiência. Quis antecipar o seu sonho, o ter os seus amigos todos reunidos agora já na fase seguinte, com todos os nossos putos à volta. Creio que ela, secretamente, tinha a expectativa de que eu, de alguma forma, tivesse já mudado, e tivesse abraçado aquela experiência mística de culto da maternidade, como um velho hippie depois de 15 horas a ouvir os Grateful Dead. Mas se há coisa que odeio é obrigarem-me a fazer seja o que for.
Foi a primeira vez que, no meu grupo de amigos, um encontro nosso viu alterados todos os seus códigos de comunicação. As caralhadas foram banidas; os cigarros foram ao frio; a comida fora de horas; a sagrada visualização do Benfica conspurcada por uma galhofa provocada, com o intuito de me mostrar que “a tua vida como a conhecias acabou, agora é isto, e é lindo”.
E o que digo, muito sinceramente, é que a minha vida, a partir de agora, pode “ser isto”, mas “isto” está muito longe de ser “lindo”. É um cabrão de um pesadelo. Sei que muita coisa já mudou, e que muita mais vai mudar. Que não posso esperar que continue a ser tudo como eu quero (embora gostasse bastante que assim fosse), que há cedências, que há novas “prioridades”. Eu sei e estou preparado para isso. Mas recuso-me a atirar a minha individualidade para o lixo, e passar de repente a uma espécie de meia-idade acéfala em que nada acerca de mim ou da minha felicidade importa, em nome das sacrossantas criancinhas. E mais, não é por ir ter uma criança que passei a adorar todas as crianças de repente, e que passei a ter uma propensão natural para gostar de aturar as crianças dos outros.
O mais curioso é que, no meio de tudo isto, as crianças até se portaram bem. Elas estavam apenas a ser crianças, e até bem porreirinhas. O problema foi os progenitores, mais concretamente a minha cara amiga anfitriã, que está de tal forma consumida com o êxtase da futura maternidade que nos quis enfiar a todos, pela goela abaixo, o seu modelinho de vida de sonho. Lamento dizê-lo (not really), mas o meu modelinho de vida de sonho não é nada disto.
Quero muito ter a minha filha e sei que o vou desfrutar intensamente. E também sei que vai ser duro, cansativo, interessante, esgotante, enervante, e excelente. Sei isso tudo e estou preparado, tanto quanto se pode estar antes de se passar por isso. Mas quero continuar a ser uma pessoa feliz, porque isso fará de mim um pai muito melhor. Quero continuar a beber copos, a fumar, a fumar ganzas, a ver o Benfica, a fazer amor com a minha mulher, a ouvir música, a escrever, a ler. A viver, e não apenas auto-limitar-me a viver através de outrem, por mais desejada e amada essa pequena pessoa seja.
Em resumo, a bela experiência de uma espécie de ritual de “mãe terra” foi o pior contributo que me podiam ter dado no que toca à minha iminente paternidade. Andei dias a bater mal, a pensar se sou normal, se sou um egoísta, se estou preparado. E finalmente percebi que sim, que estou preparado. Que, no meio de todas as futuras dificuldades, quero apenas tentar fazer as coisas bem, à minha maneira. Sem me alienar, sem me obliterar, sem me transformar numa massa incolor e triste, que apenas ganha vida quando aquela pequena vida me alegrar com as suas graças. Essa pequena vida apenas me vai acrescentar à felicidade que já tenho na minha vida. É ganhar o Joker em cima do euromilhões, e isso é absolutamente fantástico.
E é possível.
PS – a noite terminou da pior forma. Por volta das 11 da noite, juntei-me com mais dois machos e fomos fumar uma bela ganzinha ao frio. Acabava eu de dar as primeiras passas daquela erva mesmo boa, quando a minha anfitriã, sempre ela, qual albatroz, me comunicou que “a tua senhora disse-me para te avisar que está cansada”. “Oh, foda-se”, pensei eu, enquanto se ouvia o som do que eram os meus testículos a caírem sobre o cimento. Eu era o condutor, a minha senhora não gosta de conduzir, muito menos à noite, muito menos na autoestrada. E eu só fumei porque estava convencido de que íamos ficar mais um pouco, dava tempo para desfrutar, descer da moca, e conduzir a família feliz em segurança até casa. Propus que esperássemos um pouco, a ver se aquilo passava, mas meia hora depois a moca só subia, e eu sem a poder curtir, todo atrofiado porque queria ficar em condições de conduzir, como tinha sido previamente combinado. Não deu. Acabou por trazer ela o carro. Conduzindo devagar, de forma hesitante pelo meio do trânsito caótico de todos os bimbos que, sábado à noite, vinham da Costa mostrar os “élerons” para as Docas e a 24 de Julho. Conduziam todos furiosamente, perigosamente, fazendo sinais de luzes perante a lentidão da minha esposa, esses cabrões de merda com gel na tola. E eu no lugar do passageiro, com uma moca descomunal, absolutamente aterrorizado com o trânsito e tentando ajudar a minha senhora “deixa passar esse”, “é na saída a seguir”, “cuidado com este doido!”.
E a sentir-me miseravelmente culpado.
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10 comentários:
Que filme. Um filme do caralho!
Vim parar aqui ao acaso e deixa-me te dizer que essa história é bem real na minha vida. Antes de mais “perdi” grandes amigos, precisamente, por causa de terem filhos. Vivem obcecados em função deles e as suas próprias vidas foram por água abaixo.
Do tipo:
- a ver se chegam por volta das 18:30 a nossa casa que o menino Tomás está habituado a comer cedo.
Quando chego eu, o puto já se fartou de comer chocolates e doces de todas as espécies, e come uma garfada de arroz e um bocado de carne, depois de os Pais darem 300 voltas à mesa com a colher em riste atrás do menino Tomás.
Estou a ver que manténs o teu Blogue à bastante tempo. Os meus Parabéns por isso.
Eu nos últimos dois anos, desde que estou emigrado, criei também o meu espaço e gostava que desses uma vista de olhos.
http://seguesoma.blogspot.com/
Um grande abraço e continua.
Tás fodido, basicamente.
Epá Bastard, conselho de amigo: evitar ir a banhos em piscinas de hormonas. Se achas que é mau agora, imagina só quando o tema fôr "o que eu sofri no parto, mas foi tão lindo".
Quando chegar à parte das teorias da educação, com os livros do Brazelton e o caralho, até te cospes. Foge dessa gaja e vê o Benfica na tasca, à homem.
E mais: Estivesse eu agora no leito de morte e tivesse de deixar um testemunho à facção masculina da humanidade, seria algo neste registo: "Por amor da Santíssima, evitem os cursos pré-natais!"
eheheh
Foda-se, foi lindo!
Quando a tua amiga dormir 3 horas por noite passa-lhe rapidinho a tesão do mijo.
Welcome to the club, you big bastard.
First rule of the fight club...
Para que os(as) que vivem em negação relativamente a estas questões no "maravilhoso" universo da Kidzania não coloquem a hipotese desta conversa toda não passar de desabafo egoista de macho latino. Eu, individuo do sexo feminino, 37 anos, venho demonstrar a minha solidadriedade... já passei por filmes de terror bem semelhantes, o pior dos quais com uma das minhas melhores amigas: tudo mudou, os nossos lanches gulosos de bolos e gelados "after-work" cheios de conversas paralelas e divertidas foram substituidos por uma ida rápida á maquina do café, em horário de expediente, regados com uma descrição de cor e cheiro de babas, vomitados e cocos, arrotinhos e cerinha dos ouvidos... a minha vida deixou de ter qq sentido ou importãncia porque "quando chegar a minha vez" é que finalmente vou ver "a Luz", as pessoas para ela deixaram, inclusive, de terem nomes próprios para passarema ser as mães, pais, tios e tias de A, B ou C :P
passados dois anos, começo a rever, muito timida e esporadicamente a minha amiga Andreia de outros tempos... mas que foi duro, foi...
Se um dia "chegar a minha vez" espero não me esquecer quem sou e dos outros,não perder a identidade, mesmo mergulhadinha na tal piscina de hormonas, se o fizer que alguem me diga e chame a razão, please!!!
Entre a obsessão compulsiva da tua amiga e o relax dos McCann que vão jantar fora e deixam os putos xonar , existe um universo de bom senso que te permite continuar a ver o Benfica, a beber uns copos e a mandar umas abaixo, etc, etc. Mas sim, prepara-te porque o embate é grande. May the force be with you.
Merda merda merda... somos mesmos carne para canhão, é tudo, what you see is what you get não há mais vida nem salvação para lá desta merda.
E pensar que ainda estou na fase em que sinto arrepios na espinha perante o conceito, ainda nascente, do "casal amigo". Foda-se, "casal amigo", não consigo dizer essa merda sem me sentir uma espécie de swinger pervertido ou o camandro.
Ah caraças que é mesmo isto que penso e pensava estar isolada no mundo dos que já são ou vão ser pais.
Dados importantes:
- sou gaja
- estou prenhe (mesmo, mesmo qs lá)
E não podia estar mais de acordo contigo.
Para mim o mais importante de tudo do que disseste é que só sendo feliz poderás ser um bom pai. E anulando-te isso jamais será possível. Mantenhamo-nos fiéis a nós e deixemo-los crescer sem o fardo da responsabilidade pela nossa realização que passa por eles, mas não pode passar SÓ por eles pelamordasanta...
(E pronto deixo-te interrogando-me se nasci com alma de gajo, ou se há mais mulheres na minha situação que pensem como nós e que não me encaram como uma cabra fria. É que eu amo já muito o pequenito que aí vem não haja confusões, mas não o tenho como a razão do meu existir, nem ele vem para colmatar qq vazio que em mim houvesse.)
força aí companheiro.
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