sábado, 19 de fevereiro de 2011

Provavelmente o post mais longo da história deste blog

Quando apareceu o bruá à volta da nova música dos Deolinda, a coisa pareceu-me muito relevante, e fiz a habitual nota mental de reflectir sobre o assunto aqui no blog. Depois, o trabalho e a criança roubaram-me o tempo todo. Os dias foram passando e, de repente, toda a gente estava a falar do assunto. Aí, numa reacção naturalíssima que a minha senhora chama de “ser do contra”, perdi a pica de escrever. Custa-me escrever sobre um assunto que conta com a opinião de Miguel Sousa Tavares. E custa-me ainda mais dar-lhe 15-0 neste campo, e a mim ninguém pagar para dizer disparates e escrever maus livros.
Adiante.
Toda as gerações precisam de um hino, de uma causa, de uma bandeira. Eu cá não sou grande fã dos Deolinda, mas acho que esta música serve perfeitamente o propósito de hino de uma geração.
É bom dizer já, à laia de disclaimer, que esta coisa das gerações é perigosa e tem muito que se lhe diga. Não gosto particularmente da minha geração, nem de qualquer outra. Conheço muita gente da minha idade que é idiota chapada, e pessoas mais velhas, e mais novas, que são cinco estrelas. Ou seja, tudo o que vou escrever tem de ser lido com o filtro da generalização, mas não sendo possível analisar toda a gente, é a única forma de fazer isto.

Em primeiro lugar, parece-me muito bem a ideia – ainda que perigosa – do choque de gerações. Tal como de choque social, de ricos contra pobres, acho muito bem. E necessário. Esta paz podre do politicamente correcto, em que nenhum exagero é permitido, só serve os medíocres e os burocratas, e tem-lhes servido muito bem. Demasiado bem. Por mais injusto que possa ser, é importante que haja um choque geracional, mesmo que ninguém ganhe. E a música dos Deolinda teve esse grande mérito, de colocar o país a discutir apaixonadamente um assunto relevante.

É óbvio e indesmentível que temos um severo problema de precariedade em Portugal. Afecta todas as faixas etárias, mas sobretudo os jovens que tentam (alguns há uma década) entrar no mercado de trabalho.
Uma das interpretações que me surpreendeu e que acabou por ganhar peso na opinião pública foi a de transformar este problema numa questão de demasiados direitos conseguidos pela geração anterior. Estes são vistos como uns glutões, uns incompetentes, que se alaparam a um lugar na Função Pública sem saberem ler nem escrever e de lá não saem nem à lei da bala, em nome dos “direitos adquiridos”. Acho chocante a forma como a Direita procurou, assim, apropriar-se de uma mensagem que, em momento algum, faz menção a essa geração privilegiada anterior. Quem potencia a precariedade é o Governo das últimas décadas, e muito poucos governaram à Esquerda. E os patrões, que não me parecem ser grandes partidários dos “direitos adquiridos”. E depois, não nos esqueçamos que este país tem menos de 700 mil funcionários públicos, que são sempre os maus da fita. São demasiados, é óbvio, mas é redutor culpá-los de tudo.

Mas a verdade é que este assunto é demasiado complexo. E, como tal, é demasiado simplista culpar toda a geração anterior pelo que se passa com a nossa.
Atenção, eu culpo a geração anterior de muita coisa. Acho que nos legaram uma sociedade de merda, desumanizada e injusta . Acho que se aburguesaram de forma demasiado entusiasta, depois de os ver com grandes bigodaças no 25 de Abril e agora obcecados com o status e os carros, e a votarem PS e PSD. Mais, é uma geração que continua a cobrar moralmente o facto de terem feito a Revolução, quando de facto foi, na sua esmagadora maioria, uma geração fraca que só acorreu às ruas quando as tropas o fizeram primeiro. E, sobretudo, é uma geração que não pode encher a boca com o 25 de Abril, e terem hoje o comportamento que têm.
Caíram que nem patinhos dóceis em todas as armadilhas do capitalismo, amaram o Guterres e o Cavaco, e legaram-nos isto: necessidade de consumo desenfreado, incapacidade social, desemprego e frustração.
Mas não a culpo pelos direitos adquiridos. Até porque, também os dessa geração, estão a ser paulatinamente espoliados. Quem, no seu perfeito juízo, abdicaria dos seus direitos adquiridos e cederia o seu lugar a um mais jovem, sabendo perfeitamente que nunca mais arranjaria emprego, para se reformar antecipadamente seria penalizado pelo Estado, etc, etc?

E vamos agora à nossa geração. Em primeiro lugar, como pode ter autoridade moral para falar, e votar como vota? Por outro lado, em muita coisa somos privilegiados. Quantos dos nossos pais faziam férias no estrangeiro como nós fazemos? Quantos iam jantar fora com a mesma frequência? Quantos tinham de ter carro, aliás um carro por pessoa? Quantos tinham os putos, nós, em escolas privadas caríssimas, como tanta gente faz hoje? Quantos de nós nos vimos limitados à quarta classe? Quantos fomos mandados para a selva para mater em nome de um conceito errado de país?
Hoje todos temos mp3, computador. Roupa boa, mesmo que comprada em saldos. Vamos à bola, que é caríssima, apanhamos grandes camadões em bares que nos roubam descaradamente ao cobrar 4 euros por uma imperial. Gastamos fortunas a comprar DVD’s na Amazon. Ténis bons, telemóveis, iPads e merdas afins.
Atenção, não defendo a austeridade do estilo de vida de outrora. Prefiro torrar desde que possa e não ter grandes poupanças, mas tenho que estar disposto a aceitar que isso me deixa exposto se tiver um azar sério na vida. São compensações diferentes. Há que escolher e aceitar as consequências dessa escolha.

O grande problema da nossa sociedade não está nos direitos adquiridos: está na completa ausência de meritocracia. Quantos de nós temos chefes – até da mesma idade que nós – que são nulidades completas, ou pelo menos piores profissionais que nós? E apenas porque conhecem as pessoas certas, lambem as botas certas, etc, etc. Portugal é um país sem mobilidade social. Os que nascem em famílias ricas continuam ricos, e através da sua rede dão-se bem na vida. Infelizmente, a única mobilidade social que existe em Portugal é dada pela política, vide José Sócrates e Armando Vara, e sabemos bem como isso aconteceu. Em Portugal, a grande maioria das pessoas de qualidade não tem oportunidades. Achar que isso acontece porque há tipos mais velhos lá alapados é uma falácia. Não têm oportunidades porque não são julgadas pelo seu mérito. Este é que é o ponto. Porque vivemos numa sociedade corrupta, de aparências, mesquinha. E escolhemos para Primeiro-Ministro um homem profunda e convictamente corrupto. Temos, então, o que merecemos.

Como já disse aqui uma vez, o problema é que há umas 300 pessoas que mandam neste país, a esmagadora maioria medíocres, para ser simpático. Essas escolhem 600 igualmente más, mas que funcionam no mesmo registo mental. Por cá, não se contrata ninguém que possa vir a fazer sombra ao chefe. Contrata-se um merdas, que funcione da mesma forma, e que toda a vida estará grato pelo favor que lhe fizeram. E que por sua vez fará outros favores, promoverá mais medíocres, etc, etc.
O resultado é termos um tecido económico e social composto por uma pirâmide de miseráveis, incultos, fracos e co-dependentes.
Agora, com este panorama, ponham esta merda a funcionar, se conseguirem. Assim, sem mudar isto, eu não sei como.

O que sei é que isto assim, como está, é um crime. Vai dar cabo do país, mas quem manda não está preocupado com o país. Para eles funciona, sempre funcionou, portanto não há qualquer estímulo para mudar seja o que for. O que temos nas mãos é o resultado de décadas disto, e o resultado não podia ser diferente. Milhares e milhares de jovens qualificados que saem do país, porque querem ser reconhecidos pelo seu valor, porque querem viver condignamente, porque aqui estão fartos de bater contra um muro de frustração e indiferença.
Um país que é um gigantesco e gritante ‘case study’ de gestão danosa.

Este assunto é tão rico, tão complexo e toca tantas coisas importantes que me excedi no tamanho da posta. E tanta coisa, obviamente, ficou por dizer. Este é só mais um contributo, de um membro desta geração que, com sorte e esforço, conseguiu até agora manter a cabeça de fora de água. Gostaria apenas que nos concentrássemos em lutar contra os 300 ou 600 ou 3000 merdas que mandam nisto e que nos deixaram aqui. Porque reduzir isto a uma luta geracional vai dar apenas a um desvio de atenções que, na prática, nos deixará na mesma.

PS – tenho também de aplaudir a forma discreta como os Deolinda se comportaram, ao tornarem-se os ‘media darlings’. Toda a gente fala deles, e eu não os ouço falar. E ainda bem. Fossem outros os protagonistas e não faltaria a óbvia tentativa de aproveitar a onda.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ufa. Li o teu post até ao fim. :) Só tenho a acrescentar: os Deolinda com isto tudo, merecem a minha admiração e o meu respeito!
Morais

Anónimo disse...

Concordo com quase tudo o que escreveste.
Só há uma coisa que quero acrescentar, e que devia ser mais um ponto de reflexão para todos nós, que temos alguma dificuldade em olhar para nós próprios. Vou enquadrar-te para perceberes de onde falo:
Sou sócia de uma empresa com cerca de 60 empregados, temos todos os tipos de contratos: efectivos, a prazo, a recibos verdes (estes a pedido dos próprios para poderem ter mais rendimento liquido).
A precariedade nos contratos que temos hoje em dia tem muito a ver com a inflexibilidade da nossa legislação no que diz respeito aos contratos de trabalho. Tenho actualmente 4 casos "difíceis" em mãos, de pessoal que simplesmente ganha demasiado para o que é capaz de produzir, e que está efectivo. Ou seja, é pessoal que dá prejuízo, literalmente. E que por muitos acordos que possas fazer, só vai embora se quiser. Podes dizer que não os devia ter contratado, obviamente que não, mas é impossível só pelo CV saber exactamente o que uma pessoa vale. Neste momento, tentamos contratar cada vez menos pessoal para os quadros, simplesmente porque estamos escaldados!