segunda-feira, 14 de março de 2011

Obrigado pela Esperança

Sábado poderá ter sido um dia histórico para Portugal. Ou um dia irrelevante.
Só o saberemos nos próximos meses e nos próximos anos.
Estive na manifestação em Lisboa, que começou tarde e naturalmente desorganizada, mas que se compôs, de repente, numa coisa muito grande, e muito, muito bonita.
Não sei quantas pessoas estavam. Não é isso o mais importante. Era importante que estivesse muita gente, mais do que a "meia dúzia de gatos pingados" vaticinada pelo absolutamente medíocre Sousa Tavares. Eu estava céptico, com receio. A malta do Facebook é rápida a fazer e a desfazer amigos, e carregar no "Like" dá muito menos trabalho do que efectivamente mexer o cu e fazer algo. A verdade é que fui surpreendido pela afluência. Muitos jovens, a maioria. Muitos precários e explorados. Mas também reformados, também eles à rasca, também eles vítimas, mas com menos voz, o que é ainda mais dramático. Muitas crianças. Muitas famílias, lutando pelos seus, pelo futuro dos seus, cada vez mais negado, desde já.
No final, isto teve muito pouco de "protesto do Facebook". A verdade é que, não fosse a extensa e polémica cobertura que a comunicação social tradicional lhe deu, o movimento não teria conseguido sair de um grupo estrito de jovens, sem grande adesão do "povo" comum.
A verdade é que houve de tudo. Um bloco de "Arquitectos de Lisboa à Rasca", seguida por um de "Direitos dos Animais", outro de "Legalize it". Tudo boas causas. É claro que também apareceram uns apatetados jovens nacionalistas, felizmente discretos e pacíficos. Muita esquerda, claro, maioritária. Alguns grupos, significativos, de liberais. Muitas palavras contra o Estado. Muítíssimas palavras contra os políticos e os partidos. Muitas bocas a Cavaco, que apesar do seu apelo a um "sobressalto cívico" não convenceu ninguém. Uma chuva de críticas a Sócrates, o coveiro deste país. Apenas o último, é certo, mas o mais decisivo.
Foi, no fundo, o escape para uma série de grupos de descontentes, de protestantes. Apesar de tudo, a mensagem central nunca deixou de ser a luta contra a precariedade, contra o desperdício, contra a austeridade cega, contra a falta de oportunidades.
Vi, com muita curiosidade, as reacções ao estrondoso sucesso destas manifestações. Os comentadores, sobretudo os mais à direita, repisaram os mesmos argumentos: de que eram instrumentalizados pelo PC e pelo Bloco (mentira, e foi refrescante quando Joana Amaral Dias subiu ao palanque para falar e foi apupada, naquele estilo histérico de pita molhada a brincar ao PREC); que são exigências pequeno-burguesas (que eu saiba, lutar por uma melhor condição de vida é comum a qualquer manifestação); que não se defende nada, apesar de se lutar contra algo (mentira, vi mensagens muito certas e muito claras, mesmo que muitas dissonantes, sobre os caminhos a seguir); que querem é, como os mais velhos, um emprego para a vida, de preferência no Estado.
E é neste ponto que quero tocar. Não vi ninguém a pedir isso. Aliás, esta geração, criativa e arejada como é, não vê, de forma alguma, uma carreira de funcionário público como o seu sonho de vida. Vi gente, muita gente, a reclamar uma única coisa: oportunidade.
Esta é a chave.
Oportunidade para mostrar o que valem, e ser justamente remunerados por isso. É simples. Igualdade de oportunidades, e quem for melhor que seja remunerado como tal. Ao contrário do que acontece agora, em que os melhores desta geração têm apenas uma de duas hipóteses: ou emigram ou aceitam trabalhar quase de borla e sem direitos, mesmo que muitos sejam melhores do que os seus medíocres chefes.


Alguém falou de mudança de paradigma. E é mesmo isso. É preciso mudar o paradigma económico e social deste país. No estado em que estamos, não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar esta gente. Que trabalha, que prova todos os dias que tem valor. Mas que não ganha para fazer uma vida. É não apenas injusto; é um suicídio económico e social.
Os comentadeiros, bem instalados no seio do sistema que os tem tratado tão bem, insistem na vacuidade do protesto. Porque só conseguem ver o seu futuro quando deixar de ser "inorgânico", como eles dizem. Meaning, quando for assimilado por um partido. É só assim que conseguem ver a realidade política. Bastava terem estado na rua para perceberem o quão enganados estão. Não tem nada a ver com isso. Ontem, cada passo dado na rua foi uma intervenção política. E quem não quiser entender a mensagem vai cometer muitos erros no futuro.
Depois do que se passou ontem, este movimento e esta geração conseguiu, pelo menos, uma coisa: não é possível, a partir de agora, ignorá-la. Podem continuar a tentar ridicularizá-la, como têm feito até aqui. Felizmente, aqueles milhares de pessoas mostraram que não têm medo disso, que a frustração é maior do que o receio do atestado de menoridade social e política que os bem-pensantes lhes tentaram e tentam passar. Podem gozar, criticar, bater. Mas não podem mais ignorar, e isso é uma grande, enorme vitória.

Boa parte daquela gente, acredito, nunca se tinha manifestado. Acredito que muitos não votem habitualmente. E espero, muito sinceramente, que o passem a fazer. A manifestação deu às pessoas a noção de que, todos nós, somos seres políticos. E que a vertente política é tão importante e estrutural como a vertente social, laboral, familiar, etc, etc. Não acredito, confesso, que a solução passe principalmente pelos partidos que temos. Não da forma como estão estruturados, como se organizam, como crescem das bases de boys. Mas acredito que a solução passa também pelos partidos. Porque a rua é importante, mas mais importante ainda é o voto. Se metade desta gente passar a votar, já é muito, muito bom.
Muitos tentaram conotar este movimento com a negação da democracia. De que a rua significa a anarquia, a rejeição de tudo sem propor nada. Não foi isso que vi, não é isso que está em causa. O que vi foi uma prova de vitalidade da democracia, porque vi, finalmente, uma consciência cívica que já tinha desistido de encontrar. O sistema está doente, claramente. Se não estivesse não teríamos estes movimentos. Mas não é a democracia que está doente. É a partidocracia que nos sufoca, que não dá respostas, que não dá sequer atenção, como se a sua função fosse servir-se, e não servir o povo.
Para mim, o que fica é isto.
Gente que percebeu que, querendo, tem voz. Que unidos podemos alguma coisa. Que a intervenção e a frustração não podem ficar sempre pela mesa de café. Os meus votos é que esta iniciativa resulte numa maior consciência cívica. Ao nível de manifestações, sim. Mas também ao nível das associações, das famílias, das pessoas. Do voto. Da participação.

Quero, por último, salientar a forma extraordinariamente pacífica e ordeira como o protesto decorreu, o que é ainda mais surpreendente tendo em atenção a óbvia falta de uma organização central. Nem um vidro partido. E salientar também o exemplar comportamento da polícia. Presente, como necessário, mas nas ruas laterais, sem tentar dar nas vistas e provocar seja o que for.
De todos os lados, fica um dia histórico. Um dia muito bonito.

PS - Augusto Santos Silva, o ministro da Propaganda e da Defesa deste moribundo e incompetente governo teve a melhor reacção de todas. Depois de dizer que o governo partilha das preocupações dos jovens, e de o conseguir dizer sem se rir, teve uma excelente tirada: "Nada se resolve assim, na rua, pondo em causa as instituições". Pois não, caríssimo conservador. O 25 de Abril, com o qual você e os seus comparsas gostam de encher a boca, fez-se nos gabinetes, e não nas ruas, não foi?
O vosso amigo Kadafi não diria melhor.

Um forte abraço para todos os que marcharam. Obrigado por me terem devolvido um bocadinho da esperança que tanta falta me faz.   

2 comentários:

. disse...

o augusto santos silva é para mim um dos maiores reaças incompetentes da política nacional actual. tenho amigos que o conhecem e digo-lhes o mesmo, na esperança que lho transmitam, e ainda acrescento insultos à opinião.

quanto à manifestação, fui à do porto. e tendo ido a 80% das manifestações dos últimos 15 anos, e nunca vi tanta gente na rua. incrível.

David de Jesus disse...

O problema principal que vejo nisto é que o sistema está desenhado para ser uma democracia "com intermediário", este tipo de manifestação é perfeitamente legítima, mas expressar descontentamento só vai até um certo ponto, para mudar alguma coisa realmente é preciso mudar os processos decisórios. E a nossa democracia representativa está neste momento a aproximar-se do esgotamento de um ciclo. Os partidos do sistema são como um desastre ecológico, predadores de topo que destruíram o ecossistema em que vivem. Ou isto dá nalguma coisa capaz de ocupar o lugar deles e se começa um novo ciclo, com gente que a seu tempo também se irá eventualmente alapar aos lugares, ou partimos para um paradigma de democracia diferente deste que temos. Mas vai assim um pouco por toda a Europa, a ver vamos.