domingo, 3 de julho de 2011

O programa do Governo

Por motivos profissionais, eu li o programa do Governo.
São cento e tal páginas, num estilo desigual que denota ter sido escrito a muitas mãos. Entre o técnico, o vago, o pueril, o pomposo, o falso humilde e o motivador, sobra alguma coisa importante, que me fez reflectir.
É um verdadeiro programa de Direita, mas mais no sentido liberal do que no sentido conservador. Tal como costuma fazer a Direita, praticamente não tem ideologia, embora as medidas venham carregadas dela. Visível, há apenas um ponto: o "visto família". Diz lá que este Governo terá um ponto prévio, um pressuposto que será aplicado a tudo: nenhuma medida será aprovada em Conselho de Ministros se não receber o tal de "visto família". O que quer dizer que todas as medidas serão avaliadas tendo em atenção o impacto sobre as famílias. Creio que a história do corte de subsídio de Natal terá passado, obviamente, no teste do "visto família".
Privatizações em barda, etc, tudo aquilo que já se sabia. Aliás, este é um mérito do programa. Traz aquilo que Passos Coelho e Paulo Portas haviam prometido/ameaçado.
Saúde e educação, incentivando a iniciativa privada. O que não diz lá é que este incentivo é à custa do serviço público, mas é inevitável, são as duas faces da mesma moeda.
A cereja em cima do bolo é a história dos subsídios de rendimento mínimo e afins. Pretendem substituir o dinheiro pago por "alimentos, vestuário e medicamentos". Mais uma vez, parte-se do princípio errado. De que todos os beneficiários são malandros que não querem trabalhar. De uma vez por todas, há uma coisa que tem de ser feita: chama-se fiscalização, e existe em países civilizados e até nalguns mais pobres que nós. Este conceito revolucionário, afinal, é simples. É fiscalizar se quem recebe o merece. Se não merecer, corta-se. Esta fiscalização é função do Estado, que seria o principal beneficiário dessa tarefa. Estado que, mais uma vez, prefere demitir-se dessa função, e cortar tudo à bruta, apanhando bons e maus. E mais, é o regresso ao conceito da caridadezinha. De que os pobres merecem sopa, dada por um bom samaritano que tem um bom carro; mas não tem direito a vinho, ou a cigarros, ou a qualquer outra coisa que o ricaço não aprova.
Por todo o programa, a velha ideologia de Reagan. Há que criar riqueza através do mercado, da liberalização total de tudo o que for possível. Essa riqueza, naturalmente, chega primeiro aos ricos, aos detentores do capital e dos meios de produção. E, a prazo, irá pingando para baixo. Acontece que, entretanto, vamos esmagar ainda mais os pobres e a classe média, reforçando os meios dos ricos. Mesmo que acreditasse que este modelo funciona, e tenho sérias dúvidas, tenho ainda mais dúvidas de que tenhamos o tempo para esperar que a riqueza "pingue".
É, sim, um verdadeiro e completo programa de Direita. Que me deixaria muito preocupado se fosse mesmo todo cumprido. A ver vamos.

Mas isto leva-me ao ponto a que queria chegar.
Tenho ouvido muita gente dizer que a Esquerda falhou, portanto agora é a vez da Direita tentar.
Com uma diferença: a Direita não tenta. A Direita faz.
E com outro pormenor: a Esquerda nem sequer tenta, porque a "Esquerda" que esteve no poder nunca quis ser de "Esquerda".
Sócrates e o seu séquito tiveram preocupações bastante simples: controlo mediático; conquista e manutenção de poder, a qualquer custo; dinheiro para si e para os seus amigos, muitos deles do "mercado"; desmantelamento progressivo do Estado Social por razões economicistas, mas de forma escondida por razões eleitorais.
Tirando as questões dos "costumes" (aborto, casamento gay, etc), nada de Esquerda se viu que não tenha servido algum dos outros objectivos que descrevi anteriormente. Um bom exemplo foi a utilização da golden share na PT, supostamente uma coisa de Esquerda, o Estado a usar o seu poder contra o mercado, neste caso, a Telefonica. Mas bastou esta subir o preço, enchendo ainda mais os bolsos de "pobrezinhos" como o BES, para a golden share ir pela janela.

E esta é a questão: o falhanço absoluto do PS de Sócrates abriu uma passadeira vermelha para a Direita, porque deixou na mente das pessoas a imagem de um falhanço absoluto da Esquerda. Quando, na verdade, nada teve de Esquerda. E esse é o pior pecado de Sócrates. Ao ter verdadeiro nojo de verdadeiras políticas de Esquerda (que não usam Armanis e falam com a boca cheia) mas sempre insistindo publicamente (e enganando muita gente) que fazia uma política de Esquerda, deu o poder à direita, por 8 anos. Estes são os factos. Aconteceu o mesmo com o palhaço irresponsável do Blair e a sua filha da puta Terceira Via.
Acontece que, tendo vergonha de ser de Esquerda mas encher a boca com a Esquerda, dá nisto. O poder à Direita.

Sei que muitos xuxas dizem, tecnicamente com razão, que o Bloco e o PC ajudaram a Direita a chegar ao poder. Mas a verdade é outra. É esta.

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