quarta-feira, 25 de abril de 2012

De presenças e ausências

Mesmo que eu não percebesse nada do assunto, bastar-me-ia ver quem critica o 25 de Abril, e o que representam, para perceber logo de que lado devia estar.
Nos últimos dias, fui presenteado no tenebroso facebook com comentários de alguns idiotas que, a pretexto da ausência de Mário Soares e da associação 25 de Abril das comemorações oficiais, aproveitaram não apenas para os atacar, como para atacar a própria revolução. Não vou falar sequer do paradoxo de que, não fora o 25 de Abril, e essa gentinha fina não poderia sequer exprimir a sua opinião. Isso é demasiado fácil.
Basta ir ver quais os "argumentos" desta gentinha. Resumem-se a um: isto descambou com o 25 de Abril. Mais concretamente, o 25 de Abril foi a causa longínqua da presente consequência, que é o nosso país.
Em termos económicos, consigo reconhecer que o PREC representou, de uma forma alargada, a destruição de parte do tecido produtivo português, que por acaso até era uma bela merda, ineficiente, injusto e completamente incapaz de competir num mundo globalizado. Ou seja, não se estragou nada de muito fundamental. Se não se destruisse, e seguisse o seu curso até aos dias de hoje, o desfecho económico do país seria o mesmo. E é isto.
Porque o resto, o que ruiu, teve apenas um senão, não ter ruído com mais força, com mais determinação, com mais consequência. Eventualmente com mais sangue, em determinados casos.
Aquilo que Abril significou, em termos de destruição, foi muito para lá de um sistema político de fantochada. Foi mais do que a democracia, no estrito sentido do direito ao voto livre e limpo. Foi a afirmação de uma vontade, de um caminho, de um sentido de cidadania plena. Não se é cidadão sem liberdade. Não há liberdade sem dignidade. Não haverá nunca plena cidadania se não não houver justiça. E nunca haverá justiça enquanto houver desigualdade de oportunidades. Enquanto - como ainda acontece hoje em dia em Portugal - quem nasce rico morrerá rico e, muito pior, quem nasce pobre muito dificilmente morrerá noutra condição.
Quando olho para esse projecto de cidadania iniciado em Abril, não tenho, nunca tive nem nunca terei, dúvidas de que lado estou. Porque sei o que quero ensinar às minhas filhas. Porque quero que sejam cidadãs de corpo inteiro. Solidárias, preocupadas, conscientes, libertárias. Não as quero escondidas num conservadorismo porque sim, porque sempre assim foi. E muito menos num retrocesso como aqueles que também ressurgem aqui e ali, por via de saudosismos monárquicos ou piores.

Quanto às ausências e às presenças.
Como me dói ver o cravo, murcho de envergonhado, na lapela de Vítor Gaspar. Na de Mota Soares. Na de Paulo Portas. Dizem eles que o 25 de Abril não tem donos. E não tem, é um facto. É de todo o povo português. Mas, no sentido inverso, há quem devesse ser proibido de se associar.
O problema não é Mário Soares, Manuel Alegre ou os capitães de Abril não estarem nas comemorações oficiais. O problema é estarem Passos Coelho, Pedro Silva Pereira, Cavaco Silva. Traidores, todos eles, dos ideais de Abril.
Acho muito bem essas ausências. Podiam perfeitamente ter feito este gesto antes - por exemplo no consulado do camarada Sócrates, outro liberal encapotado (o que é o seu menor problema). Mas enfim.
Mas, de facto, vamos colocar os pontos nos i. Como pode esta gente, este Governo e este presidente, homenagear Abril? Encher a boca com Abril?
Quando tudo o que fazem é espezinhar não apenas os direitos adquiridos por causa do 25 de Abril, mas tudo o que esta data representou? Aliás, como pode esta gente estar nos cargos actuais? Que eu saiba, para tomarem posse, têm de jurar fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. Que está, ainda, impregnada do cheiro dos cravos de Abril. Podemos discutir se isso faz ou não sentido nos dias de hoje, mas o facto é que assim é.
Onde estão os princípios deste Governo? Onde está a solidariedade, pedra fundamental da Constituição? Onde estão os direitos, as liberdades, as garantias, que dão nome a um capítulo essencial do documento? Onde, na politica deste Governo?
Que, em vez de promover o emprego, na maior crise de que há memória, facilita e torna mais barato despedir, ao mesmo tempo que corta os subsídios de desemprego que podem servir de rede a essa gente. Que corta todo o tipo de apoios sociais aos mais desfavorecidos, ao mesmo tempo que chora por eles lágrimas de crocodilo Louis Vuiton. Que continua a carregar em cima do povo, deixando intocáveis os mesmos de sempre?
Antes de Abril, era o cacetete para quem falasse diferente da norma, para quem protestasse. Para agora, basta-me lembrar dois exemplos: a manif anterior, com a selvajaria cujo único problema, aparentemente, foi ter apanhado alguns jornalistas; e a escola da Fontinha. É ainda, e de volta em força, o conceito do respeitinho. Do culto não da autoridade mas do autoritarismo. Do conformismo. Do conservadorismo bacoco.
Antes de Abril, havia o culto do pobre e do empobrecimento. E agora?
Antes de Abril, a atrasada economia nacional era dominada por famílias amigas do regime, com perigosas ligações às antigas colónias e à política. Os Espíritos Santos, os Champalimauds, os Mellos. E agora?
Pois.

Abril foi o momento em que este país se permitiu, embriagado de alívio e alegria, sonhar colectivamente com um mundo melhor e, como tal, mais justo.
O 25 de Abril tem traidores. Muitos traidores, Décadas de traidores. Desde - no topo - os responsáveis políticos e os grandes "empresários". Mas também muita gente anónima, como os nossos pais, por exemplo. Que, nesse dia, também andaram na rua, a gritar vivas. E que depois, com a melhoria da vida, acharam que já não precisavam de ideologia. Que os plasmas seriam suficientes, e continuariam a vir, sempre, cada vez melhores e mais fininhos. Até que tudo desabou. E agora, espero eu, olham para trás se sentem vergonha por ter deixado as coisas chegar a este ponto.
Mas tem também muita gente, que nada fez pela Revolução - como eu e muitos de vós - mas que constitui o mais importante exército de, estranhamente, memória e militância.
Abril foi um sonho colectivo de mais igualdade, mais justiça, melhores condições de vida. De solidariedade. E, num momento em que os que estão no poder - e muitos que estiveram antes - impõem, de facto, uma agenda de reforma política a coberto de desculpas financeiras, cabe-nos a nós estar vigilantes.
Estarmos militantes. Estarmos mentalmente despertos. Estarmos, e sermos, solidários.
E é por isso que os ressabiados do 25 de Abril (os que perderam muito porque o haviam roubado a alguém) não conseguem esquecer Abril. Não conseguem deixar de cuspir veneno. E é isso, também, que me dá tanto prazer.

Abril foi esse sonho. E diz-se "25 de Abril sempre" por algum motivo. Porque um sonho não tem prazo de validade. Não será vítima do esquecimento. Porque os ensinamentos que nos deixou, e nos quais um dia, colectivamente, acreditámos, continuam a fazer sentido hoje. Continuarão a fazer sentido, sempre.

Uma última palavra para Miguel Portas. Um homem que ousou ser, além de político, um Homem. 

2 comentários:

NR disse...

Infelizmente não estás errado. Muito bom.

papousse disse...

És grande, Bastard!