segunda-feira, 23 de agosto de 2004

Ícaro (ou a crítica da estética reflectida)!

No outro dia olhei para o espelho (que nunca mente) e exclamei: "Foda-se...sou um puto giro!" Comecei então a pensar sobre o que queria eu dizer com aquilo. No fundo sou um puto banalíssimo que se esforça para ser giro.

Como eu existem milhões! Milhões que de manhã se levantam e iniciam (maiores ou menores, conforme uma série de circunstâncias e condições) esforços, no sentido de saírem para a rua a gosto. Cada um com o seu estilo, com o seu cunho (im)pessoal. Betos, freaks, fashions, shungas, dreads, e tantos outros estilos ou sub-estilos, vítimas da cultura, têm em comum o facto de atribuirem à estética um razoável valor na afirmação das suas personalidades e uma atençãozinha especial da parte do pensamento.

Goffman, na sua obra "A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias", expõe de forma interessantíssima o teatro da vida, através da análise das personagens que montamos para os outros no sentido de lhes fazermos crer que somos aquilo que pretendemos que creiam que somos. O que é a estética então, se não a capa exterior destas personagens?

No fundo o sentimento de eu enquanto mim próprio não existe. Existe sim uma conjugação de variadíssimos fantoches de nós próprios que utilizamos circunstancialmente. Se pensarmos bem, acabamos por ser wanna be's de nós próprios. E são esses ideiais-tipo que, de acordo com a ocasião, gostávamos de ser e de fazer crer que somos, que ditam as regras das nossas opções estéticas.

Nesta "sociedade de consumo imediato", em que se vive a 300 à hora, não chegamos sequer a ter tempo para ser chiclets. Mal entrámos na boca e já estamos a ser cuspidos.
É exigido ao cidadão moderno, que se quer conivente com a cultura do seu tempo, que apresente sem demoras quem é, o que defende, que nível cultural apresenta... enfim...que se revele em poucos segundos. Uma olhadela rápida e sabemos imediatamente quem é o macaco que se nos apresenta. "Quem é este cromo?"- não temos contemplações em perguntar quando se nos avizinha alguém cujo visual nos é antipático. Nunca o vimos mais gordo. Nunca falámos com ele. Nada sabemos daquele sujeito que confirme ou infirme este facto (a peremptoriedade da afirmação não valida a "cromice" enquanto hipótese: é factual!), mas a verdade é que ele acabou de ganhar um bilhete (quase) sem retorno para o caixote do lixo do nosso afecto. O inverso também é real. A gaja boa ganha aos pontos à gaja inteligente e interessante e, mesmo que a primeira seja um produto descartável, a verdade é que poucos descartam a hipótese de lhe saltar para cima antes de ela ter tempo de grunhir um qualquer nome de ex-residente da mais famosa casa da TVI. Talvez depois de termos angariado mais uma aventura para contar aos amigos, nos permitamos perceber qual o potencial interesse da menina. E, mesmo assim, para muito bom rapaz, as mamocas levam-no muito mais rapidamente ao altar que o socialismo.

Face a esta brutal (é mesmo o termo) relevância do aspecto exterior, não admira pois que tantos de nós se dêem ao trabalho de optimizar os seus recursos naturais e materiais no sentido de apresentar uma casca que seja do agrado de determinado grupo de identificação. Sim, porque nenhum de nós, estétas, tem a ilusão de agradar a todos, nem de desagradar a algum. Paradoxal? Não...é a puta da realidade! Se não considerássemos as nossas opções estéticas como as mais bonitas (aos olhos de quem quer que seja), certamente não as tomaríamos, embora o nosso comportamento social nos empurre de forma quase inescapável para indivíduos do mesmo estilo, ou de estilos toleráveis, e da crítica à nossa opção ser sempre difilcilmente engolida.

E irrita-nos tanto o confronto com os grupos intoleráveis! Criticamos enojados a atenção aos promenores: as combinações cromáticas, as dobras em mangas e calças, os folhos, os penteados trabalhados, os adereços (de cabelo, pulsos, pescoços, cinturas, tornozelos, umbigos, sombrancelhas, lábios, narizes e basicamente um pouco por todo o corpo), o tipo de roupa, a marca da roupa, os óculos de sol, os carros, as motos...sei lá...tudo aquilo que faz do outro um ser repugnante apenas por gostar e utilizar determinado tipo de figurino. Onde está um espelho quando é preciso?! O conceito que subjaz tudo o que criticamos...mata também a nossa sede. Utilizamos variantes processuais, mas o objectivo é o mesmo.

Calemo-nos de uma vez na nossa comunhão com todos os cromos deste mundo!

Existem muito poucos que escapam desta teia (Ícaro) e aceitam a estética como algo próprio e não enquanto propriedade do mundo. Que realmente se estão a cagar (até porque nem lhes passa pela cabeça pensar nisso) para o impacto da sua imagem, dando muito maior relevância à consonância consigo do que com a opinião pública. No fundo "é o que separa os Homens dos meninos" como afirma o Camarada Papousse.

É que os Homens são bonitos e são feios, mas SÃO! Os meninos gostavam de ser!


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