quinta-feira, 12 de maio de 2005

VII. Homem-Nada

Frio. Tenho frio. "Que merda é esta?" Que dia é hoje? Sábado? Domingo? Segunda-feira será possível? A boca está mais do que seca e os lábios estão colados. "Hoje é... Hoje é... AH! Hoje é domingo!" É isso, hoje é domingo, foda-se. 'Tou todo fodido, a cabeça lateja como se tivesse os sinos da igreja tocassem a rebate a anunciar um incêndio no celeiro comunitário da aldeia. Das minhas orelhas sai um fumo negro. Afinal o incêndio não é no celeiro, é no meu cérebro que arde com violência. Os bombeiros nunca chegarão a tempo.

Devo de ter chegado a casa todo bonito ontem, pois devo. Nem sequer enfiar-me dentro da cama fui capaz, o melhor que consegui foi ficar atravessado em cima desta meio-vestido, meio-despido. Devia de estar bonito, devia.

Estou todo fodido, doiem-me partes do corpo que eu nem sabia que possuía. Com o pouco do miserável equilíbrio que me resta, atravesso o corredor que separa o quarto da casa de banho. Encalho na porta na casa de banho, debruço-me sobre a bacia e miro a triste figura que se encontra prostrada no espelho. Olheiras, lábios gretados, cabelo despenteado e oleoso, palidez total. Lavo a tromba com água fria na vã tentativa de recuperar alguma dignidade. Sorvo um gole de água da torneira, que cai nos escombros do meu estômago com um estrondo, mais se parecendo com um saco de plástico cheio de água, a cair dum décimo andar em cima de um automóvel.

São quase seis da tarde, e já há quase duas horas que estou deitado no sofá em frente à televisão, ora a mudar de canal, ora adormecido, sempre com uma grande má-disposição, derrotado pelo golpe de Estado que se encontra em curso nos meus restos mortais.

Nove da noite e ainda não comi nada. Estou fraco, tenho fome. Alimentar-me é um imperativo. Aquilo que se aparentava com uma tosta mista, tão depressa entra no meu corpo, como tão depressa é expelida em jacto rumo à sanita, junto com alguns bagos do arroz de pato véspera que não tinha sido eficazmente digerido. A expurga, apesar de dolorosa, fruto das convulsões estomacais, fez-me bem. Sinto-me parcialmente recauchutado.

Meia-hora, outra tosta mista e quase um litro de água depois, sinto-me recuperado como se fosse um carro em terceira mão com pneus novos, pronto para fazer mais alguns milhares de quilómetros. Velho e cansado, mas ainda a trabalhar.

Borrego em frente à televisão, vendo o tenebroso filme de adolescentes da nocturnidade domingueira, que prenuncia mais uma semana de trabalho. Apago-me.

Acordo com os comerciais da madrugada televisiva. Arrasto esta amalgama de pele e ossos para a cama, para dormir o pouco mais de um par de horas que faltam até ao despertar. Logo é segunda de manhã.
"Tell me why I don´t like Mondays."

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