domingo, 4 de fevereiro de 2007

EU NÃO SEI

Estamos a pouco tempo do referendo (mais um) acerca da despenalização do aborto. E eu não sei como votar.
Para um tipo de esquerda que deseja que os direitas percam sempre nem que seja à macaca, é lixado. Tenho tentado convencer-me de que esta questão se pode, em última análise, resumir à dicotomia esquerda/direita, em termos de como um indivíduo se posiciona perante a sociedade. Mas não consegui. E, na verdade, não sei como votar.
Em primeiro lugar, há a questão do próprio referendo. Já houve um, estão lembrados. E o não ganhou. Pode discutir-se se foi ou não vinculativo, mas isso não passa de uma tecnicalidade. Não foi votar quem não quis. Estamos numa pseudo-democracia, como tal é costume respeitar-se a opinião expressa da maioria. Eu, que fiquei lixado com o resultado da consulta de então, aleguei a fraca participação, a forte movimentação dos padrecos e todos os velhos que moram acima do Mondego. Mas acho que isto não é mais que uma tendência de superioridade mental com que a esquerda continua a olhar o resto do país. Achamos que temos razão, sabemos (!!!) que temos razão, os outros estão todos errados, como tal tem de haver maneira de mudar a decisão. Não é?
A própria realização deste novo referendo me parece dúbia. Foi há uns anos, (oito, dez, não me lembro), o que é um grão de poeira num contexto alargado e, em termos históricos numa decisão desta importância, de uma completa insignificância. Mas aí estamos com nova consulta. E porquê? Apenas porque a decisão desagradou. Alguém acha que estaríamos agora a fazer um novo referendo se tivesse ganho o sim? Mesmo que não fosse “vinculativo”? É óbvio que não. Este referendo é uma falta de respeito para com todos, tal como eu, que foram votar nesse referendo. Andámos a brincar?
Pela mesma ordem de razões, se o sim ganhar agora e daqui a uns anos o PSD chegar ao poder - e todos sabemos que isso vai acontecer – será legítimo que se convoque novo referendo, para então dar uma nova oportunidade ao não? Não me parece.
Há quem defenda, inclusivamente muitos amigos meus, que o PS, com a sua maioria absoluta, devia resolver a questão por via legislativa do parlamento, sem nova consulta popular. Mais uma vez, não concordo, e igualmente pelos mesmos motivos. Não se pode perguntar uma coisa em referendo e, se não se gostar da resposta, ignorá-la e decidir unilateralmente em sentido contrário. Isso é a negação da democracia.
Vamos agora aos argumentos em disputa.
O Não sofre de um problema de raiz. É suportado por ricos que pagam a clínicas espanholas para fazerem abortos nas suas filhas de colégio interno. Carecem de legitimidade para falar, uma vez que o aborto clandestino nunca foi ou será para eles uma questão com a qual se depararão. Isto parece-me evidente. Depois, misturam conceitos religiosos que não são para aqui chamados, num Estado supostamente laico. Para além disso, estes (pre) conceitos geram-me uma urticária indisfarçável e apetece-me começar a queimar bíblias à saída da missa.
Por outro lado, a prática mostrou que ninguém ganhou com a decisão do anterior referendo. Os defensores do Não fizeram, então, grandes discursos acerca de apoios à natalidade, sobretudo às mães com menos poder económico. Mas, na verdade, entra pelos olhos dentro que nada foi feito nesse sentido, e esses senhores calaram-se entretanto. Esqueceram-se, estranhamente (?), das pobres vítimas que juraram defender, em nome da santa natalidade. Esse discurso voltou agora, e eu concordo inteiramente com ele. O nosso Estado devia apoiar essas mães e essas crianças, mas todos sabemos que isso não vai acontecer. Ou seja, se o Não ganhar, tudo vai ficar na mesma. Este exército de tias bem intencionadas mete a viola no saco e, de consciência satisfeita por terem defendido A VIDA, continuam a ir a Badajoz e a ignorar olimpicamente os pé-rapados que têm de recorrer às abortadeiras clandestinas. E, verdade seja dita, as tias e os tios estão-se bem cagando para eles. São sujos, estúpidos, e metem-lhes impressão. Excepto em alturas de campanha, como é óbvio.
Quanto aos argumentos do sim, aqui a porca torce o rabo. Não sigo qualquer partido, embora nunca tenha votado à direita do PC, mas custa-me ver as figuras completamente demagógicas, e até impensadas, que a minha “tribo” tem vindo a fazer.
Para mim, é relativamente irrelevante o momento em que se pode dizer que existe um ser humano. Pôr um fim a um feto saudável e que em condições normais redundaria num ser humano, é matar esse ser humano. É indiferente saber se é às 10 ou 20 semanas. Mais uma vez, é uma questão técnica que nem os técnicos – os médicos – conseguem resolver. Mas a conclusão é, para mim, clara. É claro que as consequências – os traumas para a mãe, os riscos para a sua saúde, etc – são diferentes consoante o tempo da gravidez, mas não para o feto. Dito isto, tenho que admitir que não hesitaria em incentivar a minha companheira (em abstracto e por falta de um termo melhor) a fazer um aborto se uma gravidez surgisse numa má altura ou fosse fruto de uma relação ocasional da qual nenhum de nós gostaria que resultasse uma criança. Se o fizesse cedo na gravidez, seria mais fácil fingir que não fôra nada, apenas uma operação como arrancar um dente; mas, no fundamental, seria mais profundo que isso. Fá-lo-ia, mas não cedo à tentação fácil de descartar completamente a importância dessa decisão.
Um dos slogans do SIM prende-se com a “humilhação” e a “vergonha” das mulheres que são julgadas por praticarem um aborto clandestino. Em primeiro lugar, esta prática é, actualmente, um crime. É a mesma coisa que queixarem-se da humilhação de um ladrão que é julgado por roubar ou um político por ser corrupto. A lei é conhecida de todos.
Em segundo lugar, para além de meia dúzia de julgamentos altamente mediatizados, poucos exemplos existem de casos desses que chegam a tribunal (para além do facto de essa “vergonha” e essa “humilhação” derivarem do circo mediático, quase sempre arregimentado pelos defensores do SIM, que acabam por gerar esse efeito perverso).
Em terceiro lugar, estamos aqui a falar da decisão acerca de permitir que um ser humano nasça, ou não. É algo da mais fundamental importância e, perante esta questão, a “vergonha” e a “humilhação” parecem-me, muito francamente, questões de somenos.
Depois, há a questão do próprio prazo, que a esquerda tem tentado escamotear. Com base em todos os argumentos do SIM, as mulheres não devem ser julgadas. Muito bem. Mas a proposta a submeter à votação fala do aborto até às 10 semanas. E se a mulher abortar clandestinamente às 10 semanas e dois dias? Na prática, a esquerda defende uma lei que mantém a penalização a quem pratique o aborto fora desse prazo (com base em teses técnicas bastante ténues). E a "humilhação" e a "vergonha" das mulheres que fazem um aborto para lá desse prazo burocrático e que por isso serão julgadas? Aí já não é problemática a "vergonha", a "humilhação"?
Falemos então do direito da mulher em fazer do seu corpo o que muito bem entender. É um facto. Será? De facto, a mulher tem o direito de fazer o que bem entender, como o simples facto de correr o risco de engravidar. É lixado, elas são desenhadas dessa forma.
Tem o direito de se proteger ou não, tal como tem todo o direito (o dever, até), de praticar sexo, sabendo que não há nenhum método infalível que evite a concepção. Depois, há uma questão muito interessante, que é a proposta de alteração de lei prever que a mulher decida o que fazer do seu corpo, até às 10 semanas de gravidez, de forma unilateral. Ou seja, o homem, o pai, não racha lenha. Mesmo o marido mais extremoso, que apoia a mulher qualquer que seja a sua decisão, não tem qualquer palavra a dizer. É um dador de esperma, apenas isso. A partir daí, da sua deliciosa doação, não tem nada a ver com o que se passa com aquilo que, querendo ou não, criou em conjunto com a mulher. É interessante ver a esquerda, tão defensora da igualdade dos sexos e da participação do pai em tudo o que rodeia a vida familiar, defender esta coisa espantosa de o progenitor, seja qual for a sua situação face à mulher, não ter absolutamente nada a ver com a situação.
Depois há ainda questão económica, que é algo de que até repugna falar num assunto como este. Mas já que estou a desiludir todos os meus amigos e até a indignar alguns, vamos em frente.
O país sofre de um problema de natalidade. Se vamos ser tão materialistas nesta questão (se o feto não é nada a não ser um quistozito a ser retirado) então sejamo-lo até ao fim, de forma coerente. Fazem falta criancinhas. Para bulir, para serem explorados como os pais, o que quiserem, mas essa falta existe. Por outro lado, há a questão de colocar todo o nosso já fabuloso sistema de saúde ocupado na prática destas operações, quando já não tem a capacidade para fazer face às outras necessidades (de alguém que adoeceu não por descuido, mas porque a natureza assim o decidiu).
Depois há a questão do papel do Estado. Esta é uma matéria ainda mais sensível, porque está em causa um juízo moral do Estado. Cabe-lhe dizer o que é ou não uma vida humana, se esta prática é errada em termos “ideológicos” ou apenas um facto da vida, que tem de ser “tratado”. Para mim, o papel do Estado devia ser formar os cidadãos, com investimento a sério. Contraceptivos e educação sexual gratuitos, para que não surgissem tantos milhares de gravidezes por mero desconhecimento. Apoio às grávidas e às famílias com crianças. O Estado está, pura e simplesmente, a demitir-se destas suas responsabilidades. Há crianças não desejadas? Acaba-se com elas. Não vamos atacar a raiz do problema, vamos resolver esta calamidade social (que o é).

E é por tudo isto, meus amigos, que eu não sei. Não sei o que fazer. Vejo todos estes movimentos, partidários e os outros disfarçados de apartidários, e parece-me apenas uma luta de galos ideológica. Esquerda contra direita, e vice-versa. Slogans estapafúrdios e irresponsáveis atirados para o ar, à procura de mais uma medalha para pôr ao peito. E as mulheres e os homens que vão votar (parece que neste caso ambos têm voto na matéria e este vale o mesmo) vão na cantiga. Não passam, muitos deles, de peões, de carne para canhão na guerrinha partidária.
De um ponto de vista egoísta, gostaria que ganhasse o Sim. Se tivesse um problema, resolvê-lo-ia mais facilmente e de forma mais segura. Mas o que está aqui em causa não é uma questão egoísta. É muito mais profundo que isso.
Vejo toda a gente ter uma opinião, defendê-la com unhas e dentes, com uma inconsciência atroz. Mas eu cá não sei.
Gostava de saber, mas não sei.
Sei apenas que irei votar, mas para além disso não faço ideia.

E era isto.

Mandem vir.

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