Quando és um puto suburbano e andas na escola, a música é, muitas vezes, tudo aquilo que te pode distinguir, que te pode levar para outro lado qualquer. Os putos fazem todos o mesmo, vão para a escola às mesmas horas, têm os mesmos professores, querem comer gajas mas não sabem como e têm medo de falhar, querem jogar melhor à bola, querem não ser o puto que fica por baixo se houver porrada no intervalo, querem perceber que raio andam ali a fazer e o que esperam deles e como raio se conseguirá lá chegar.
Nesses tempos, a música é o que te distingue (para uns poucos é o skate ou o futebol, para mim era também a literatura). É aquilo que te faz perceber de que lado estás, quem está contigo. É aquilo que, de cada coisa que descobres, te leva a descobrir mais um pouco de ti próprio, daquilo que poderás ser, ao que estás disposto, de tudo o que podes vir a conhecer e experimentar, um dia.
Comigo foram os Xutos, os Doors, Led Zeppelin. Mão Morta, Censurados, Jorge Palma. Faith no More, Alice in Chains, Pearl Jam e Nirvana. Os Doors levaram-me ao Jack Kerouac, que me levou aos beats, que me levou a toda a fabulosa literatura americana do século XX. E em todos esses momentos, enquanto caminhava para a escola sonhando com o dia em que teria um walkman, ia-se desenhando na minha cabeça uma paisagem mental diferente da de todos os outros. A banda sonora da minha vida acompanhava-me a todas as horas, e mudava enquanto eu mudava, crescia e transformava-se, no meio de todos os medos e todas as incertezas e todos os traumas.E é por isso que desprezo, moral e intelectualmente, os desgraçados que têm os U2 como a sua banda preferida. Esses eram os tipos que, nessa altura, não tinham nenhuma paisagem mental que os distinguisse. Eram a verdadeira carneirada, e é o que continuam a ser hoje, atropelando-se em frente às câmaras de televisão enquanto vomitam expressões como "eles dão sempre um grande espectáculo".
Estou de férias esta semana, e os meus dias têm sido preenchidos de televisão desligada, ao som de jazz, tangos, boleros, grunge e punk, krautrock e ópera.
Se há algo por que posso estar grato, é por ter amor à música e à literatura. E porque não teria sobrevivido ao liceu se assim não fosse.
4 comentários:
Se, hoje, não hesito em catalogar os fãs de U2 como seres acríticos, já não o faço em relação aos admiradores que a banda tinha até meados dos anos 90, porque continuo a reconhecer valor à sua discografia de então.Sem nunca ter sido propriamente um fã, admiro todos os álbuns de U2 até ao Achtung Baby. A partir daí, o Zooropa e o Pop não são bons nem maus, e depois disso só temos muita merda e nem um nome de álbum sequer na minha memória, tirando o último (enquanto não vier outro).
Entre as bandas que referes estão algumas que chegaram a preocupar a minha mãe, tal a frequência com passavam no meu quarto. A saber: Doors, Censurados, Pearl Jam e Nirvana. A estes junto os Sitiados, os GNR, os Peste e Sida, os Pixies, os Clash, o Nick Cave, os Stone Roses e os Sonic Youth. Um pouco mais tarde, surgiram (na minha vida) os Radiohead, os Mão Morta, a PJ Harvey e tanta mais coisa que muito me ajudou a fritar a moleirinha.
Tenho saudades, foda-se.
Ps: o meu reles orgulho infanto-juvenil foi ter sido o primeiro palhaço a usar uns sapatões doc martens na escola de Azeitão. Havia um preto que mos queria roubar. Dizia que eram muito "Acid".
Lembro-me perfeitamente de irmos no carro do Páscoa, aflitíssimo da vida em 3ª a fundo a tentar subir o Alto das Necessidades. Foi aí mesmo que passei a gostar de PJ Harvey. Comuniquei-vos isso mesmo e foi uma festa. Finalmente era um de vós.
Até as lágrimas me sobem testa acima só de recordar esse fantástico momento tão nossa senhora de fátima.
Também para mim, "music is my radar". Cresci a ouvir música com o Bastard, eu a devorar os discos dele, ele a devorar os meus, numa sintonia de gosto quase total (das poucas excepções estava no desprezo do Bastard pelo grandes Jesus & Mary Chain)."When music is your special friend", consegui prevenir que adolescência tímida e quase problemática não tivesse culminado num salto de um segundo andar de um apartamento em Carcavelos, ainda para mais meramente causadora de umas míseras costelas partidas.
Enviar um comentário