sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O estranho caso do hiper-realismo infantil



Um dos mitos mais solidamente enraizados no senso comum é o de que as crianças são seres fantasiosos, com puca ligação à realidade. Nada é mais falso. Não há nada mais realista do que uma criança, e a prova disso é que mesmo as mais afirmações mais estapafúrdias são milimetricamente levadas à letra pelas mesmas. E digo-o com conhecimento de causa porque albergo em minha casa duas dessas pequenas criaturas hiper-realistas. Atentemos, então, em alguns exemplos.

No outro dia dia, a minha filha (que tem 3 anos) estava a portar-se mal e eu disse-lhe, na brincadeira, que, se persistisse na birra, lhe arrancaria, uma a uma, todas as cabeças das suas Pollys (para quem não sabe, Pollys são pequenas bonequinhas engraçadas que a pequenada adora despir e vestir). Não é que a criatura desata a chorar num pranto descontrolado, como se acreditasse que eu fosse verdadeiramente um monstro capaz de perpetrar tamanha crueldade.

E não pensem que esta tendência hiper-realista desaparece rapidamente com a idade. O meu filho, que é quatro mais anos mais velho que a pequena, continua a sofrer do mesmo crónico e incurável realismo. No outro dia, eram cerca de 6 horas da tarde, estava o meu puto a ver "A liga da Justiça", quando eu lhe disse qualquer coisa parecida com isto: "Desculpa, filhote, eu sei que são os teus desenhos animados favoritos, mas fui agora acometido de uma súbita e irreprimível vontade de ver o telejornal". É evidente que só podia ser brincadeira (até um miúdo de sete anos deveria saber que às seis da tarde não é hora do Telejornal) mas não é que o meu puto me levou a sério, soltando o mesmo grito lancinante de dor e de raiva que a minha filha alguns dias antes também soltara.

É evidente que estes episódios conduzem-nos inevitavelmente para outra questão: que relações devem existir entre ética e sentido de humor? Ou seja, trocando em miúdos, será que as piadinhas de mau gosto atrás expostas me ilibam (pelo simples facto de serem piadas) de qualquer responsabilidade moral sobre o sofrimento que infligi nos meus próprios filhos? As respostas normalmente dividem-se conforme se é o autor da piada, um receptor neutro da piada ou um receptor não neutro da piada. Deixem-me, então, explicar. Imaginem que um tipo manda uma piada qualquer sobre o Haiti. As pessoas que ouvem a piada, costumam reprovar a imoralidade inerente ao mau gosto da mesma quando ainda paira no ar o odor das 70 mil pessoas acabadinhas de morrer soterradas. O autor da piada considera habitualmente que o sentido de humor tem essa estranha propriedade filosófica de mitigar por completo a sua responsabilidade moral, por mais maliciosa que esta seja, defendendo-se sempre com um discurso deste género: "isto era uma piada, não estava a falar a sério, vocês não têm mesmo sentido de humor". É como se o sentido de humor conferisse uma espécie de imunidade diplomática ao prevaricador: qualquer barbaridade cometida ao seu abrigo dispensa qualquer prestação de contas. Quanto ao ouvinte haitiano, é claro que irá sempre e invariavelmente esmurrarar com tenacidade o engraçadinho. Pela minha parte, durmo ainda descansado: os meus filhos são por enquanto bem mais pequenos do que eu.

3 comentários:

funafunanga disse...

Interessante questão. E demonstra admirável dedicação à ciência usar os filhos como cobaias de experiências de psicologia cognitiva.

o homem do estupefacto amarelo disse...

Neste domínio, sou um liberal como tu. Detenho a propriedade privada sobre os meus filhos, faço o que quiser com o que é meu por direito (ainda para mais, para bem da ciência, como referes) e não admito que nenhum Estado Totalitário interfira sobre a minha esfera privada.

funafunanga disse...

E fazes tu muito bem! Mas ameaçar decapitar as Pollys uma a uma... A imagem é perturbadora. Espero que tenhas conseguido fazer as pazes com ela. Proponho uma abordagem do género: 'Hoje aprendemos uma lição importante. A do bluff. Um dia, quando chegares ao governo ou a uma mesa de sueca, lembra-te deste dia'.