sábado, 29 de maio de 2010

A cassete I

A nossa geração vive numa espécie de febre nostálgica e revivalista, que não sei explicar bem. Eu também faço parte deste culto, também acho que os desenhos animados de antigamente é que eram, que os putos hoje em dia têm cenas a mais, que o kispo era uma cena realmente fabulosa, etc.

Mas se há objecto pelo qual tenho um incomensurável carinho é a cassete. Cassette, para escrever correctamente, k-7 para quem tem a mania (isto seria capa sete, algo realmente diferente, que não sei o que seja).
Não sei quanta música ouvi e sobretudo descobri à pala da cassete. Toda até ao início dos anos 90, seguramente, talvez à excepção de uns quantos discos que ouvia em casa do meu pai: Help, dos Beatles, Simon & Garfunkel e Glen Miller. Havia lá uma data de discos, mas não sei porquê ficava sempre nestes, e tinha também três discos de histórias para crianças: um era uma coisa do Mário Viegas e do Sérgio Godinho, creio, outro era narrado em brasileiro e o último era com dois palhaços absolutamente alucinados a dizer disparates.

A cassete era sempre uma surpresa. Se tinha 90 minutos, depois do album que se pretendia gravar aparecia sempre qualquer outra coisa, para aproveitar o espaço de fita, claro. Foi assim que descobri Smiths, por exemplo, numa cassete de outra coisa qualquer que O Rapaz do Estupefacto Amarelo me emprestou. Por falar nisso, ainda tenho a cassete dele de Cure, que tinha um restinho de Rádio Macau. Esta cassete ficou mítica, porque ele me perguntava de tempos a tempos e eu, pura e simplesmente, não me lembrava de a devolver. Até que achei piada à coisa e fiquei com ela de propósito. Para quando finalmente ficarmos sem assunto e sem insultos para trocar, a conversa poder ser desbloqueada com um simples: "Ouve lá, já devolvias a cassete dos Cure, não?".

Andava eu na preparatória quando apanhei o vício da música. Tinha poucas cassetes: o primeiro album dos Xutos em versão reduzida (era o chamado mini-album), uma colectânea bastante boa do Elvis, o Born in the USA do Springsteen, e uma data de jackpots e colectâneas avulsas. Ouvia tudo no meu gravador do spectrum, porque não havia aparelhagem. Depois ofereceram-me um mini-tijolo, daqueles fininhos, só com um deck, que para mim era a coisa mais sofisticada do mundo. Um dia assaltaram-nos a casa, e só levaram o tijolinho, não havia nada para gamar, porque até a televisão era velha e pesada para caraças.

É claro que outro clássico da cassete, quando já cheguei ao prazer supremo de ter dois decks, era fazer as minhas próprias compilações. Dava uma trabalheira do caraças, mas era bem fixe. Antes disso só gravava cenas da rádio, do António Sérgio e das vezes que a Marginal passava discos inteiros todos seguidos, quase sem interrupções (creio que era quinta à noite e sábado ao final da tarde). E a rainha de todas as compilações em cassete é a cassete de amor. A declaração amorosa em forma de música. A escolha das canções (que tinham de ser acessíveis ao ouvido delicado e pouco experiente de uma rapariga, mas ainda assim tinha de ter algo de alternativo, para mostrar o quão profundo eu era). A escolha da ordem das músicas, a irritação que dava quando um lado da fita acabava antes da música. Depois, escrever no cartão o nome das músicas, e sobretudo nas cassetes de 90 minutos aquilo às vezes não cabia. Eram dias de trabalho intenso mas genuinamente feliz. E depois a rapariga sentava-se ao lado de outro gajo qualquer no autocarro, na visita de estudo. E, como resposta, tudo o que apetecia era fazer uma nova compilação, cheia de dor de corno, tendo como tema central, obviamente o "Still Loving You", dos Scorpions.

Quando veio o walkman, foi a puta da loucura, e lá se ia a semanada na compra de pilhas, que sempre duravam pouco, muito pouco.

Lembro-me perfeitamente da primeira coisa que fiz quando tive o meu primeiro carro, um Citroen Ax. Antes de tudo, meti a cassete do primeiro album de White Zombie. Nessa altura já havia CD's, claro, mas o carro ainda era um fiel companheiro da fita magnética, e ainda bem, passando os anos seguintes a abarrotar o porta-luvas com caixas e cassetes desencontradas.

Esta é a minha homengem à cassete, que sempre foi, de facto, mais que um suporte. Foi uma forma de vida, de descobrir a vida. Boa parte da minha existência passou por aquele rectângulo mágico.

Obrigado.

2 comentários:

o homem do estupefacto amarelo disse...

Só te devolvo os álbuns dos Jews quando finalmente me devolveres a mítica cassete dos Cure, a minha única cassete de Crómio, linda e prateada.

Little Bastard disse...

urso, não a mereces de volta. É dourada, não é prateada.