quarta-feira, 21 de julho de 2010

As aspirações literárias frustradas de uma pobre criatura amarela

Um dia, fernando acordou, com uma enorme vontade de mijar, esquecendo-se absolutamente que estava morto. Levantou aflito a tampa do caixão, esgravatou depressa a terra em direcção à superfície, e por fim aliviou-se, desenhando um longo e demorado arco no céu, arco-íris de mijo monocromático maldosamente apontado para um carreiro de formigas. Não lhe ocorreu por um segundo pensar na estranheza daquela ressurreição. Fernando sempre fora um homem simples, e simples lhe parecera a ideia de um homem se levantar da terra para se aliviar, naquele lavabo de ciprestes tristes.
A palavra lavabo não é de todo inocente, fernando dizia palavras assim,
lavabo,
de maneira que,
janota,
engomado,
oxalá,
não é de somenos,
motociclista,
e poderíamos continuar sempre assim, a empilhar, umas em cima das outras, em direcção ao céu, palavras janotas e bem engomadas que só os velhos dizem, e fernando era já um homem velho quando morrera.
As causas do seu falecimento não foram estranhas, foram apenas idiotas. Apesar dos dois enfartes em menos de dois anos e de um tumor na próstata já quase do tamanho de uma miniatura de bola de berlim, fernando morrera por uma terceira via, debatendo-se contra uma pestana que lhe entrara no olho quando atravessava a mouzinho de albuquerque para comprar o passe social, e lhe passou o oitenta e um por cima. Mas desses factos fernando nada se lembra, pois, é bom não esquecer, esquecera-se absolutamente que estava morto, lapso de memória um pouco conveniente, cochicham os outros mortos entre si, os invejosos.
Tal como também lhe pareceu simples e natural ficar agora sentado, simplesmente sentado, a aquecer-se ao sol, como os lagartos e os pretos velhos nos bairros sociais, ouvindo os palavrões pequeninos das formigas, esticando as suas pernas de boneco de plasticina esborrachado pelo oitenta e um, como se fosse um desenho animado polaco de vasco granja.

(seria engraçado que o seu neto, o senhor engenheiro, o robôzinho trabalhador em outro carreiro de formigas, dissesse ao seu patrão mal disposto, vá-se foder, não trabalho mais, vou voltar à minha infância para ver o meu avô de plasticina no programa do vasco granja,
mas o senhor engenheiro nada disse)

Depois, cansou-se da modorra, desceu distraído o estranho jardim, regando as flores de plástico com jactos de cuspo rápidos e certeiros como línguas de camaleões, e imaginou que era outra vez o jardineiro camarário de orgulhoso boné verde, o rei do jardim da estrela, no tempo em que os animais falavam dentro de si, no tempo em que nenhum dos seus amigos estava morto.

(e imagino agora o seu neto, o senhor engenheiro, a cuspir às escondidas por todo o lado como um louco, nas gavetas do patrão, nos livros de cheque do patrão, nas algibeiras do casaco do patrão, às escondidas, sempre às escondidas)

Saiu do jardim e entrou na rua, como quem abre a porta de casa. A sua casa estava de pantanas, folhas de plátano no chão, o tecto todo sujo de nuvens, as paredes manchadas com prédios mal-dispostos, ó claudina, és sempre a mesma coisa, pões-te a ver a novela e esqueces-te de tudo, anda aqui um gajo a matar-se a trabalhar o dia inteiro no jardim da estrela (e disse-o sem ponta de ironia), para um gajo chegar a casa e ver carros estacionados no sofá, merda de pombo no naperon da mesa da televisão, transeuntes a correr apressados do bidé para o fogão, do fogão para o bidé, do bidé para o fogão, do fogão para o bidé, motociclistas lunáticos a fazerem razia ao serviço da vista alegre, enxames de velhos a jogarem dominó em cima da máquina de lavar, um cigano a vender óculos escuros pendurado no estendal.
Claudina morrera há dezassete anos de morte natural como os sumos de laranja, mas fernando está confuso, esquece-se das coisas, não se lembra onde arrumou a dentadura, não se lembra que claudina morrera absolutamente, ajuda-me claudina, ajuda-me, é preciso varrer daqui para fora esta gente, é preciso varrer o cigano a jogar dominó em cima do serviço de vista alegre, o enxame de velhos a fazer razia ao naperon da mesa da televisão, os motociclistas lunáticos a venderem óculos escuros no bidé, os transeuntes a correrem apressados da merda de pombo para o estendal, do estendal para a merda de pombo, os carros estacionados na minha cabeça, a apitarem, a apitarem, ajuda-me claudina, ajuda-me.
Fernando lembrou-se por fim onde arrumara a dentadura - e se realmente fosse um desenho animado polaco de vasco granja, uma lâmpada de plasticina amarela ter-se-ia acendido em cima da sua cabeça - tinha-a posto de manhã debaixo da passadeira de peões da parada do alto de são joão, pensando, se o oitenta e um me passar outra vez por cima não me há-de partir as minhas cáries de plástico compradas a prestações no chinês da afonso terceiro.
Já com os seus dentes brancos made in hong- kong vestidos (tão brancos como os dentes dos pretos velhos dos bairros sociais), fernando sentou-se no banco de jardim da parada do alto de são joão a ver a bola, resmungando com os transeuntes apressados (do fogão para o bidé, do bidé para o fogão) que se punham à frente da televisão, enquanto ia bebendo as pedras da calçada fresquinhas que tirava do frigorífico. No fim do jogo, entrou num café e pediu uma imperial,

fernando, o que faz você aqui? O fernando está morto.

(Fernando olhou para si próprio,
a cerveja a escorrer pelos buracos do seu corpo putrefacto,
os vermes a correrem estonteados)

desculpa, costa, tinha-me esquecido.

Deixou uma moeda cheia de terra no balcão e voltou triste para o cemitério. Nunca mais ninguém viu fernando a passear pelo alto de são joão.

1 comentário:

Little Bastard disse...

Já to tinha dito, mas bravo...