terça-feira, 20 de julho de 2010
Justiça Prescrita
Uma das características que nos definem como povo é projectarmos as virtudes da comida em coisas que não são comida. Quando um macho lusitano pergunta ao seu amigo "já comeste a Kátia Vanessa?", está a manifestar o seu enorme apreço e respeito pela rapariga, equiparando-a às coisas mais sagradas para si, como polvo à lagareiro e pataniscas de bacalhau. Da mesma forma, para o legislador tuga, um crime é um produto alimentar como outro qualquer, com um determinado prazo de validade - 10 anos -, a partir do qual se degrada irreversivelmente e "prescreve". Dez anos depois, muito mais relevante do que provar se Carlos Cruz é ou não culpado, será evitar que os portugueses e as portuguesas apanhem intoxicações alimentares por ingerirem bolas de berlim estragadas ou crimes fora de prazo. Os fundamentos ético-jurídicos da prescrição são sólidos pois baseiam-se no insofismável princípio de que "o tempo tudo cura". Imagine, caro leitor, que emprestava a sua serra eléctrica ao seu vizinho e que este, com uma enorme lata, cortava toda a sua família aos pedacinhos com a sua própria serra eléctrica. É evidente que nos primeiros anos ficaria bastante chateado mas só alguém muito rancoroso é que dez anos depois não lhe voltaria a emprestar as suas ferramentas de jardinagem.
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5 comentários:
Não tanto o tempo tudo cura - a prescrição serve justamente para evitar que os processos se desenrolem por tempo indeterminado, lançando sobre a vida duma pessoa uma suspeição constante e o constante risco de ser privado da liberdade (que é pior do que ser condenado duma vez, cumprir a sua pena e ficar livre). É claro que esse objectivo só se verifica sem grave embaraço para a segurança dos cidadãos e atropelo à simples justiça num país onde os tribunais funcionam funcionam...
Gratzia for another esclarecimento jurídico. És jurista, funafunanga?
Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na tese de doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas. Mas confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como dizer isto debruça-se sobre a problemática da cessão dos créditos. Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei por mim teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de noventa do século passado.
Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas e infindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de Direito. Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio. Mas agora, passado o período de nojo, aproveito para deixar aos meus leitores dois ou três avisos sobre o dito curso.
Pois bem: trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezível das criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente dito: sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiranias sortidas e as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocar apenas o curso, aqules cinco penosos anos de colónia penal. Convém aliás explicar que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mas como forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica de opressão, de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima.
Não vou agora aqui sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível a princípio e se tornou depois indiferente. Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meu descontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido. Estava com sono. Escrevinhava coisas num caderno. E em cima do estrado, o monocórdico mestre dissertava sobre a «servidão de estilicídio». Eu explico: trata-se de garantir o escoamento das águas quando um prédio vizinho não está a mais de cinco decímetros do outro.
A minha vaga insatisfação com o curso tornou-se, nesse segundo, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não era certamente estudar o escoamento de águas e a distância entre os prédios. Que se lixasse o estilicídio. Eu queria distância era do curso. Porque essa era a nossa faina. Engolíamos, como óleo de rícino, noções assim intragáveis durante dez infindáveis semestres. Não apenas a acção de despejo, o IRS ou a recorribilidade do acto administrativo, assuntos minimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituição da Costa Rica. O inadimplemento culposo. A impugnação pauliana. A venda a retro. A ineptidão da petição inicial. As prescrições presuntivas. A substituição quase-pupilar. O fideicomisso. O anatocismo. A enfiteuse. Os vícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contrato sinalagmático. O registo das sociedades em comandita. O benefício da excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interesse desmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em todos os seus nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os infindáveis casos entre o "senhor A" e o "senhor B", que vendiam um ao outro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma, deixavam violas de gamba em usufruto, e por aí em diante. Por vezes iam mais longe: o usufruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, o processo na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris?, perguntavam, sacanas, os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber. Por esta altura, todos nós queríamos mais era que o senhor A e o senhor B se quilhassem.Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei isto. Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto.
Aguentei o prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinhei de capa a capa catrapácios de setecentas páginas sobre a pensão de alimentos por causa disto. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam nisso. Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais decentes. Como pianista num bordel
Este tasco está cada vez mais mal frequentado. Alguém começou a servir copos de leite?
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