quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Os sociais democratas também se abatem

Caros camaradas do tasco, gente sadia de esquerda a quem muito saudavelmente o capitalismo vos mete nojo, ajudem-me. Fiz trinta e dois anos há pouco tempo e pareço estar a desenvolver todos os sintomas de me estar a transformar num social democrata.

Vejamos então quais são os meus terríveis sintomas.

1. Deixei de defender revoluções. Considero que em democracia a única via legítima para caminharmos para uma sociedade mais justa é a via política não violenta, nomeadamente através do voto. Uma revolução só é legítima quando as vias políticas não violentas são proibidas, como sucede numa ditadura. E mesmo assim, a violência de uma revolução só é legítima se servir de rápido estádio de transição para um regime em que a violência não possa ser utilizada novamente como método de confronto político. Esse regime tem um nome, chama-se democracia. Desta forma, condeno e desprezo tudo o que sejam acções violentas de extrema esquerda, desde o partir montras em nome da luta contra a globalização capitalista, até destruir campos de milho transgénico em nome dos alegados perigos dos produtos geneticamente modificados. Detesto a violência. A violência só é legítima como legítima defesa contra a violência, ou seja, quando não é possível defendermo-nos da violência por outra forma que não seja uma defesa violenta (fui claro, não fui?).

2. Deixei de ter uma concepção optimista sobre a natureza humana. Se bem que admita que o ser humano tenha alguma propensão para a cooperação e para o altruísmo, o ser humano possui igualmente uma enraizada tendência para a competição e para o egoísmo. Esse lado perverso da natureza humana deve ser sempre tomado em conta em qualquer sistema político. Ou seja, em sociedade e em economia, os incentivos importam. Deve é haver o cuidado para os incentivos individuais estarem alinhados com o bem público. O que, é claro, sabemos que muitas vezes não acontece.

3. Deixei de defender economias tendencialmente estatizadas. A perda de eficiência é demasiado grande, e o poder totalitário conferido ao estado sobre os cidadãos é demasiado grande. Também me oponho, evidentemente, a um mercado livre desregulado. A liberdade extrema do mercado é um paradoxo porque destrói a própria liberdade: a liberdade dos pobres, dos desempregados, dos excluídos, daqueles que não têm nada a não ser vender a sua força de trabalho. Por isso, defendo uma economia mista, em que: (a) a maior parte da economia seja de mercado; (b) esse mercado deve ser fortemente regulado para garantir a concorrência e minimizar os riscos sistémicos para o bem público; (c) que haja uma forte redistribuição da riqueza através de impostos regressivos, em que os mais ricos pagam mais impostos para redistribuir sobre os mais pobres; (d) que haja um estado social que garanta serviços públicos de saúde e educação universais e gratuitos, e uma segurança social pública baseada na solidariedade intergeracional e interclassista; (e) que os monopólios naturais e os sectores estratégicos como o petróleo, a água e electricidade sejam monopólios do estado e não monopólios privados; (f) que haja um banco público forte que, através da redução das taxas de juro, obrigue a concorrência privada a acompanhar esta redução, especialmente em tempos de crise económica.

4. A democracia parlamentar não tem que ser, necessariamente, um braço armado da burguesia. Se forem criados os incentivos correctos (que passam, na minha opinião, pelo financiamento dos partidos ser exclusivamente público, para acabar com a promiscuidade entre financiamentos privados e contrapartidas políticas a esses interesses privados), a assembleia da república (e as eleições que a legitimam) é o palco por excelência da construção e avanço da democracia. Se a esquerda perde no parlamento, tem que aceitar humildemente a decisão soberana do povo. "É a vida".

5. Desconfio das massas e das acções de rua. Partilho de uma ideia oriunda da direita de que o mais importante para um correcto funcionamento de uma sociedade é o correcto funcionamento das suas instituições. Se forem criados os incentivos certos para que funcionem bem a assembleia da república, o governo, a presidência da república, os tribunais, as empresas, os sindicatos, as comissões de trabalhadores, etc., etc., a sociedade tenderá a funcionar bem. Confiar na psicologia espontânea das massas é um grave erro. As massas não costumam ser criaturas muito racionais e ponderadas.

Pois é, caros companheiros atónitos, como veêm o meu prognóstico clínico é extremamente reservado. Os sintomas já são de tal forma graves que já me situo na extrema direita do bloco de esquerda. Por isso, é que vos peço, encarecidamente, a vocês que ainda são gente sã e lúcida que defende a ditadura do proletariado e o extermínio benigno da burguesia exploradora, para me abaterem agora, a sangue frio, como quem abate um cavalo doente, última e derradeira oportunidade para evitar a continuação do meu deslocamento político para a direita, primeiro para a extrema esquerda do PS, depois para o centro, depois para a ala direita do PS, para por fim acabar no PSD em jantares no Eleven, em companhia do Pacheco Pereira e da Zita Seabra. Abatam-me já, camaradas, antes de ser tarde de mais.

11 comentários:

papousse disse...

Em relação ao ponto 2, gostaria apenas de dizer que independentemente do optimismo/pessimismo antropológico de cada um, está por provar (e de que maneira!) que o liberalismo económico seja a melhor arma contra a perversidade humana.

Relativamente ao ponto 5, a verdade é que odeio a expressão “massas”. Cheira a traça moscovita. A tua desconfiança é legítima em relação à luta feita na rua, mas continua a assustar-me cinco vezes mais a luta que é feita em locais menos públicos e menos arejados como, por exemplo, finos restaurantes e sofisticados escritórios de advogados.

No mais, não defendes nada que o PCP (que é o partido que melhor conheço) não tenha já defendido. E não defendes nada que a Zita e o Zé Pacheco defendam.
Deixa-te por isso de merdas.
O que tu queres é mimos!

Anónimo disse...

Sabem dizer-me qual é o perigo assim tao grande da direita em Portugal? E ja agora, quanto a um post anterior, o que dizem q o CDS defende não é bem verdade (e nao, nao sou do CDS).

Cumprimentos

professor x disse...

Caro Homem do Estupefacto Amarelo, parabéns pelo post mais lúcido que li nestes últimos tempos. Infelizmente os representantes da nossa Social Democracia não são dignos de tal honestidade intelectual, basta ver o caso BPN, ou a triste figura por causa das escutas...enfim, deixa-te ficar pelo Bloco.

o homem do estupefacto amarelo disse...

Caro Papousse,

Concordo contigo. O liberalismo não é, de todo, a melhor forma para combater a perversidade humana. Pelo contrário, é um sistema político que mobiliza o egoísmo humano para rentabilizar os interesses privados muitas vezes à custa dos interesses públicos. Defendo um sistema político antiliberal, em que um estado forte regula o mercado, de forma a que os seus benefícios sejam distribuídos por todos. No fundo, é pôr a democracia a controlar o mercado e não o mercado a controlar a democracia.

Concordo também contigo que não basta que a luta política seja feita debaixo de um tecto para passar a ser justa e racional, como sucede nos lobbys privados e secretos de que falaste. São precisos outros requisitos como: a existência de um fórum público de discussão, a transparência, a livre discussão, o direito ao contraditório e a escolha assentar numa lógica democrática.

Saudações estupefactas.

o homem do estupefacto amarelo disse...

Caro Professor X,

Concordo contigo: os representantes da nossa social democracia traíram os seus ideais e venderam-se ao fundamentalismo do mercado.

P.S. (aquela coisa que se escreve no fim das mensagens e não o partido português falsamente social democrata)- Obrigado pelo elogio.

o homem do estupefacto amarelo disse...

Caro anónimo:

Na minha opinião (que vale o que vale), o perigo da direita em Portugal é promover o aumento das desigualdades sociais e impôr um conservadorismo dos costumes.

Podes estar certo e eu estar errado, mas para isso tens que me dizer porque é que a minha descrição do CDS não corresponde à verdade.

Saudações também anónimas, porque confesso publicamente que o homem do estupefacto amarelo não é o meu verdadeiro nome.

Unknown disse...

De acordo com os v/ canônes, sou claramente uma pessoa de direita e, no entanto, concordo com quase tudo o que consta do post. Só discordo em absoluto, por razões que não cabem neste comentário, do monopólio público de "serviços de interesse geral" (em particular, do sector energético, sobretudo em Portugal. Num país onde existe um forte domínio dos operadores históricos (EDP, REN, GALP)está mais do que provado que a liberalização (presente em toda a UE), ao promover a concorrência, aumenta a eficiência dos mercados (v.g. os telemóveis). O que é preciso é uma regulação sectorial forte e independente para evitar a cartelização, a garantia de fornecimento e a protecção dos consumidores.
P.S. Aos 32 anos ainda vais a tempo de te curar da flauta mágica (BE) que inebria os portugueses (mas só mesmo os portugueses...)

Little Bastard disse...

Deixa-te de merdas, pá. Para ser de esquerda basta pensar no que é ser de direita (pensa nisso e essas dúvidas passam-te).

o homem do estupefacto amarelo disse...

Caro Rodrigo:

Talvez tenhas razão em relação à necessidade de abrir uma parte do sector estratégico da energia à iniciativa privada. Mas o que eu discordo em absoluto é à forma como isso foi feito em Portugal: privatizando-se a empresa estatal (Galp). Essa privatização, ao transformar um monopólio público num monopólio privado (ao nível da refinaria) não trouxe qualquer benefício para os consumidores. Defendo o modelo intermédio da Noruega e do Brasil: manter a empresa do estado e abrir-se à iniciativa privada. Os resultados falam por si: a Petrobras (empresa petrolífera do estado brasileiro) é a 7ª maior empresa de petróleo do mundo e é considerada uma referência mundial em ética e sustentabilidade; a Statoil (empresa petrolífera do estado norueguês) investe grande parte dos rendimentos provenientes da sua exploração petrolífera num dos mais rentáveis e responsáveis fundos de pensões estatais do mundo, para partilhar os benefícios com as gerações futuras. Esta cultura de ética e transparência não seria possível de alcançar só com o sector privado, mesmo que regulado. Um dos ensinamentos da economia moderna é que os reguladores são facilmente capturados pelas empresas reguladas. Veja-se o triste caso da nossa Autoridade para a concorrência.

Saudações do homem da flauta mágica amarela.

Anónimo disse...

Não leves a mal o meu anonimato (presumo que te posso tratar por tu; em sentido contrário, peço desculpa), mas não tenho nenhum "alias" todo catita como tu ou outros bloguers/comentadores que aqui surgem... e digo isto num bom sentido. Tendo em conta que tb não acho mt boa ideia por assim o meu nome na web, espero q compreendas.
Em segundo lugar, não era nenhum ataque: sou fã do blogue, apesar de por vezes discordar de algumas opiniões; mas essa é a parte boa da coisa, certo?
Por último, parece-me que houve alguma má interpretação de (alguns) predicados do CDS e da direita no geral. Por exemplo, a questão da imigração: o CDS defende, não como referiste num post anterior, que se deportem imigrantes ilegais (o que tem de errado? Não estão a cumprir a lei, por um lado, e por outro, não podem receber os cuidados que enquanto seres humanos lhes são devidos). Quanto aos imigrantes legais, e agora digo-o eu, são bem recebidos (nós somos, afinal, um país de emigrantes).
Outro aspecto discutível será o do subsídio de desemprego (a propósito da questão das desigualdades sociais que a direita traz): o que neste caso o CDS defende, e aí parece-me que com alguma razão (se bem que não de um modo tão simplista como nos foi dado a entender) é que quem recebe este subsídio deve fazer algum trabalho comunitário para o merecer. É assim tão degradante? Custa-me mais ver pessoas (essencialmente jovens que não querem ir à "luta") com o cu sentado no sofá o dia todo em vez de tentarem trabalhar! Cm disse, claro que nem todos os casos são assim e idosos e outras pessoas teriam sp direito a esta quantia.
Quanto à parte económica, a direita de hoje (e não tanto a direita completamente ideológica que referiste) é, julgo, mais "completa": o mercado funciona livre, com regulação mínima para que não ocorram irregularidades que só prejudiquem o consumidor. Em sectores essenciais (água, energia, transportes, até o correio) há, como seria de esperar, maior intervenção por parte do Estado. O aumento das desigualdades sociais que tb referiste... bem, o Estado Social está previsto na Constituição, os mínimos estão sempre garantidos, e não me parece que numa altura de crise como esta qualquer partido "são" (daqui excluo, por exemplo, o PNR) não se limitaria aos mínimos na protecção social.
O discurso já vai longo, é melhor ficar-me por aqui. Obrigado, já agora, pela resposta ao meu primeiro comentário

o homem do estupefacto amarelo disse...

Caro anónimo,

Bom começo: depreendi do teu comentário um certo olhar humanista. Discordamos apenas da forma de concretizar esse humanismo.

Um exemplo. Na minha opinião, os imigrantes ilegais não devem ser deportados mas legalizados. A nossa economia só ganharia com isso:(a) num contexto de baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população e saldo migratório negativo (há muito mais portugueses a emigrarem do que imigrantes a virem para Portugal), a legalização de imigrantes é sinónimo de
mais população activa a produzir e a contribuir com os seus impostos para o nosso estado e para a segurança social; (b) os imigrantes são tendencialmente mais produtivos do que os portugueses que cá trabalham porque são em média mais qualificados (especialmente os brasileiros e os ucranianos- os dois grupos de imigrantes mais representativos) e têm fortes incentivos para trabalharem muito, mesmo por pouco dinheiro, para enviarem remessas para a família e para poderem voltar rapidamente para o seu país de origem. Além do mais, se não queremos que um emigrante português ilegal seja repatriado, por uma questão de reciprocidade não devemos fazer a mesma coisa aos imigrantes ilegais que estão cá. Por fim, não sou sensível ao argumento legalista: uma emigrante ilegal não é menos "ser humano" do que um português ou um emigrante legal. Como tal, de forma a que todos os seres humanos sejam tratados por igual (nos direitos e deveres), todos os seres humanos devem ser legalizados.