quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Para quem é meio voto basta
O jackpot de uma democracia seria o poder ser exercido directamente por toda a gente. No entanto, a democracia directa enfrenta dois grandes obstáculos filosóficos: (1) uma reunião de conselho de ministros com dez milhões de pessoas na mesma sala acabaria demasiado tarde, e um gajo depois já não chegaria a casa a tempo de ver a bola; (2) muitos portugueses que são excelentes nos seus ofícios (seja na carpintaria, no banditismo, na advocacia ou na subsídio-dependência), desperdiçariam o seu talento natural, tornando-se políticos medíocres.
Para superar estas dificuldades, alguém extremamente esperto e preguiçoso inventou uma versão simplex da democracia, a que chamou democracia indirecta ou representativa. A ideia é tão simples como engenhosa: (a) o povo continua a ser soberano mas, como isso dá muito trabalho, delegam-se as chatices em políticos que os representam; (b) os representantes têm a maçada de elaborar programas políticos, os representados votam no programa que gostam mais ou que detestam menos, e os representantes comprometem-se a cumprir o programa prometido, para os representados não se sentirem enganados.
Ora toda esta interessante geringonça política funcionaria na perfeição se não houvesse constantes avarias neste último mecanismo: os representantes enganam frequentemente os representados. Os exemplos são muitos pelo que citarei apenas quatro: (1) o Guterres prometeu que não subiria as propinas e subiu-as; (2) a Ferreira Leite prometeu uma trinta linhas de TGV quando estava no governo e fez do combate ao TGV a sua principal bandeira quando passou para a oposição; (3) o PS prometeu que iria malhar no reaccionário Código de Trabalho do Bagão Félix e depois aprovou um Código de Trabalho ainda mais reaccionário; (4) o Santana Lopes prometeu sempre que não era parvo e ao longo da sua longa carreira política não cumpriu uma única vez o seu compromisso.
Qual é então a causa desta avaria técnica das democracias modernas e como consertá-la? Julgo que a origem é a seguinte: "os incentivos dos representantes para mentir aos representados são maiores do que os incentivos para falar verdade", pelo que a reparação consiste em "calibrar os incentivos". O meu grilo falante diz que não, que os representantes já têm os incentivos adequados para não mentirem: o medo dos representados se sentirem mais tarde enganados e não votarem neles uma segunda vez. Mas o meu grilo nunca percebeu nada de política, pelo que lhe escapou por completo os seguintes contra-argumentos: (a) para os representantes, mesmo uma só vitória não repetida já é suficientemente recompensador, desde que se imprima um ritmo rápido no processo de clientelismo, tráfico de influências e saqueamento do estado; (b) com doses massivas de propaganda, é possível retocar as mentiras e fazê-las passar por verdades; (c) os representantes sabem que a maior parte dos representados acham que os representantes são igualmente mentirosos, pelo que a mentira perde qualquer valor discriminativo.
Como criar então nos representantes incentivos mais alinhados com os interesses dos representados? Na minha opinião, seria através da seguinte e estrambólica engenharia política: (1) dever-se-ia criar uma entidade independente com a função de avaliar os representantes quanto à percentagem de promessas que foram cumpridas; (2) os votos teriam uma ponderação em função da respectiva classificação. Desta forma, um voto num partido que nas legilslaturas anteriores só tivesse cumprido metade das suas promessas, só valeria meio voto. Para quem é, meio voto basta. E o medo de uma desvalorização abrupta da cotação de um voto no mercado eleitoral seria o poderoso incentivo que falta ao nosso sistema político.
Se a minha estapafúrdia alternativa não resultar, não faz mal. Há sempre a possibilidade de suspender a democracia por alguns semestres.

2 comentários:

Little Bastard disse...

Muito interessante esta sua análise, meu amigo. Isto porque o que está podre não é a democracia, mas sim o sistema partidário no qual a nossa democracia assenta. O que, na prática, vem dar ao mesmo. E como seria bom termos esse órgão supra-partidário, imune às pressões e conivências, feito de pessoas iluminadas e com as respostas todas certas. Infelizmente não sei se essas pessoas existem ou como podem ser designadas.
Os únicos exemplos que conheço disso, de pessoas que estão acima do resto e tomam as decisões "correctas" em nome do povo, independentemente dos interesses em causa, são as monarquias e as ditaduras, e creio que não é nada disso do que estás a falar.
Ou seja, isto está podre, mas o caminho é tentar fazer isto funcionar. Só temos o voto, mas cada vez me parece mais insuficiente.

o homem do estupefacto amarelo disse...

Acertaste-me mesmo nos tomates com a tua pergunta assassina: como garantir a independência do tal órgão suprapartidário que mede com um mentirómetro o cumprimento dos programas eleitorais? A verdade é que não tenho outra resposta mais convincente do que esta: esse órgão devia ser constituído na sua totalidade por bibliotecários do Quebeque sujeitos por sua vez à fiscalização de um segundo órgão constituído por escuteiros do Ontario.